quinta-feira, 18 de setembro de 2014

A TERTÚLIA MAIS PEQUENA DO MUNDO - dia 21 de Setembro, pelas 21 hs.






No próximo domingo, dia 21 de Setembro, pelas 21h, recomeça a Tertúlia Mais Pequena do Mundo depois do interregno do Verão. 

Agora com periodicidade mensal, a primeira tertúlia da rentrée será no Café Chapim, um novo espaço, com nome de pássaro, situado na zona ribeirinha da cidade, com uma decoração moderna e intimista, onde se desfruta de uma vista relaxante. 

Integradas no projecto de promoção de leitura “A Minha Freguesia a Ler +”, estas sessões informais centram-se quer na reflexão, debate e partilha de ideias acerca da realidade nacional, regional e/ou local, quer na leitura e comentário de textos literários de autores consagrados ou emergentes e/ou da autoria dos próprios intervenientes. 

Participe nesta rubrica regular da Biblioteca Municipal de Silves, a qual se dirige ao público em geral. 

Mais informações acerca deste projecto em http://aminhafreguesiaalermais.blogspot.pt




POESIA DE PEZINHOS MOLHADOS em Julho e Agosto


Durante os meses de Julho e Agosto, a Biblioteca Municipal de Silves e o seu grupo de Voluntários de Leitura espalharam poesia pelo areal das praias de Armação de Pêra e Praia Grande.

Encontrámos muito calor, naturalmente por vezes abrasador até, mas a força das palavras e dos (so)risos que despertámos e partilhámos refrescaram-nos por dentro. Encontrámos mais rapidamente esta frescura nas crianças de coração mais espontâneo e limpo, mas logo a seguir nos pais e adultos conscientes de que a literatura pode ser brincadeira linguística pura (como as adivinhas que constavam nos marcadores de livros para crianças que oferecemos ou os textos que lemos da autora Ana Goês) ou um momento de reflexão com expressões e uma linguagem embelezada, que formam o estilo e mundividência de um escritor.

Sobretudo à Ana Paula, à Paula Torres, ao José Paulo Vieira e à Vilma Ferian, voluntários incansáveis, o nosso MUITO OBRIGADA MAIS UMA VEZ!

Aqui ficam alguns textos e imagens da actividade “POESIA DE PEZINHOS MOLHADOS” deste ano, realizada no âmbito do Programa “Bandeira Azul” e do projecto “A Minha Freguesia a Ler +”…




Textos lidos por Ana Paula

5 de Agosto
Decidi criar gritos dentro de mim. Abro a boca e engulo todos os sons que consigo.
Depois, não os deixo sair.

6 de Agosto
Tinha gritos fechados há tanto tempo no meu peito que, quando os soltei, saíram corcundas.
12 de Agosto
Fui até às montanhas junto ao mar. Lá em cima, abri a boca para soltar um grito que tinha ficado esquecido.
Não quis sair. Tive de o expulsar aos berros.
Os gritos, quando passam muito tempo presos, ficam uma porcaria. Como os vegetais no frigorífico.

In CRUZ, Afonso, O livro do ano

Mar

I
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

II
Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.

                                                                                     In ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, Poesia I

O mar dos meus olhos

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma

E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma
                                                                                     In ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, Poesia




Textos lidos por José Paulo Vieira

O romance ingénuo de duas linhas paralelas 

Duas linhas paralelas
Muito paralelamente
Iam passando entre estrelas
Fazendo o que estava escrito:
Caminhando eternamente de infinito em infinito.

Seguiam-se passo a passo
Exatas e sempre a par
Pois só num ponto do espaço
Que ninguém sabe onde é
Se podiam encontrar,
Falar e tomar café.

Mas farta de andar sozinha
Uma delas, certo dia,
Voltou-se para a outra linha,
Sorriu-lhe e disse-lhe assim:
'Deixa lá a geometria
E anda aqui para o pé de mim…!
Diz a outra: 'Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar,
Temos de ir devagarinho
Andando sempre a direito
Cada qual no seu caminho!

Não se dando por achada
Fica na sua a primeira,
E sorrindo amalandrada,
Pela calada, sem um grito,
Deita a mãozinha matreira
Puxa para si o infinito.
E com ele ali à frente,
As duas a murmurar,
Olharam-se docemente
E sem fazerem perguntas
Puseram-se a namorar.

Seguiram as duas juntas.
Assim nestas poucas linhas
Fica uma história banal
Com linhas e entrelinhas.
E uma moral convergente:
O infinito afinal
Fica aqui ao pé da gente.

José Fanha
In http://queridasbibliotecas.blogspot.pt/2008/01/romance-ingnuo-de-duas-linhas-paralelas.html






Textos lidos por Paula Torres

O Realejo

Eu toco piano
dizia um
eu toco violino
dizia outro
eu toco harpa eu toco banjo
e eu toco violoncelo
eu toco gaita de foles...eu toco flauta
e eu toco castanholas.
E todos falavam sem parar
do instrumento que tocavam.

Já não se ouvia a música
toda a gente falava falava
e ninguém tocava
mas a um canto havia um homem que se calava:
«Que instrumento toca o senhor
que está tão calado e não diz nada?»
perguntaram-lhe os músicos.
«Eu pratico realejo
e também sei praticar facas»
disse o homem que até então
não tinha dito absolutamente nada
e em seguida levantou-se de faca na mão
e matou todos os músicos
e tocou realejo
e a sua música era tão autêntica
tão alegre e tão bonita
que a filha do dono da casa
saiu debaixo do piano
onde adormecera de tédio
e disse:
«Eu brincava com o arco
jogava à bola e ao mata
jogava à macaca
brincava com um balde
e com uma pá
brincava às casinhas
brincava às escondidas
brincava com as minhas bonecas
e com uma sombrinha
brincava com o meu irmão
e com a minha irmã
brincava aos polícias e ladrões
mas agora acabou-se
quero brincar aos assassinos
quero tocar realejo.»

E o homem pegou na mão da menina
e correram vilas e aldeias
entraram em casas e jardins
e mataram imensa gente
e depois casaram
e tiveram muitos filhos.

Mas
o mais velho estudou piano
o segundo violino
o terceiro harpa
o quarto castanholas
o quinto violoncelo
e depois desataram a falar a falar
já não se ouvia a música
e voltou tudo ao princípio!

Areias movediças

Demónios e maravilhas
Ventos e marés
O mar já se retirou para longe
E tu
Como alga docemente acariciada pelo vento
Agitas-te em sonhos no leito de areia
Demónios e maravilhas
Ventos e marés
O mar já se retirou para longe
Mas nos teus olhos entreabertos
Ficaram duas pequenas ondas
Demónios e maravilhas
Ventos e marés
Duas pequenas ondas para me afogar.

Sou como sou

Sou como sou
Sou destrambelhada
Quando me apetece rir
Rio à gargalhada
Amo quem me ama
Que culpa tenho
Se não é o mesmo
Que de cada vez amo
Sou como sou
Sou mesmo assim
Que mais quereis
Que quereis de mim

Sou feita para agradar
E não posso mudar nada
Tenho saltos muito altos
Cintura bem cavada
Seios muito rijos
Ando maquilhada
E depois?
Que têm vocês com isso
Sou como sou
Ando com quem quero
Que vos importa
O que passou
Sim amei alguém
Sim alguém me amou
Como só as crianças sabem amar
Amar amar...
Porque me interrogais
Estou aqui
para vos agradar
E nada mais posso dar.

Pequeno-almoço

Deitou o café
Na chávena

Deitou o leite
Na chávena com café

Pôs o açúcar
No café com leite
Com a colher
Mexeu
Bebeu o café com leite
E pousou a chávena no pires

Sem dizer palavra
Acendeu
Um cigarro
Fez círculos
Com o fumo
Deitou a cinza
No cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar

Levantou-se
Pôs
O chapéu na cabeça
Vestiu
A gabardine
Porque chovia
E saiu
Para a chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
E eu pousei a cabeça na mão
E chorei.
                                                                                                                In PRÉVERT,   Jacques, Paroles




Textos lidos por Sónia Pereira







Era uma vez dois.

Era uma vez dois. Ela morava num incêndio. Ele, numa gota de chuva. Encontravam-se. Às vezes, pouco.
Encontravam-se ao ar livre, neste banco de jardim, naquele banco de jardim.
- Onde moras?
Ela não dizia «Num incêndio»
- Numa zona quente – dizia.
Ele não dizia »Numa gota de chuva»
-Numa zona húmida – dizia.
A tentação era conhecerem a casa um do outro.
Alguma vez havia de ser. Foi o que ela pensou, sem medir o risco:
- Quero ir a tua casa.
- Não tem condições – desculpou-se ele. – Está num caos.
- Isso que importa? Vamos arrumá-la, os dois.
- Não, hoje não. Fica para outra vez.
Susteve-a. Para desviar-lhe os intentos, propôs por seu turno:
- Só se fôssemos à tua …
-Não há hipótese – respondeu ela, num repente.
- Porquê? Eu gostava.
- Noutra altura. Hoje não.
- Também não?
- Também não.
Ficaram que tempos em silêncio, naquele jardim desabrigado.
- Achas que algum dia poderei ir a tua casa?
- perguntou um, não importa qual.
- E eu, achas que algum dia poderei ir a tua casa?
- perguntou um, não interessa qual.
- E eu, achas que algum dia poderei ir à tua casa? – respondeu, perguntando, o outro.
- Receio que não.
- Também diria o mesmo.
Estavam a ser sinceros. Começavam a encarar a realidade. Mas talvez já fosse tarde, ou melhor, a realidade é que se atrasara, porque eles os dois estavam dentro do seu próprio tempo.
- E se procurássemos um sítio onde coubéssemos e que não fosse demasiado quente nem demasiado húmido? Um sítio à nossa medida.
Uma casa para os dois.
Quem propôs, ou ele ou ela, e com alguma convicção, obteve do outro a resposta adequada:
- Onde tu te sentires bem, também eu me sentirei.
Enganava-se. Enganavam-se ambos, aliás, porque o abrigo que escolheram  não os satisfazia em nada. Ele afogueava-se. Ela enregelava.
-Vamos desistir? – propôs um deles.
- Se desistimos, espalhamos o desânimo.
Seremos responsáveis pelos que não tentam, pelos que perdem antes de tentarem. Vamos dar-lhes razão. Argumentos.
Supunham-se uma fábula e queriam a todo o custo provar fosse o que fosse, sacrificar-se em favor da fábula que julgavam encarnar.
- Estou exausta – disse ela.
- Também estou exausto – disse ele.
Abraçaram-se. Despediram-se. E ele, que nascera numa gota de chuva, encaminhou-se para um incêndio. E ela, que nascera num incêndio, foi à procura de uma gota de chuva.

In TORRADO, António, Almanaque lacónico



Amor em primeiro lugar

Adoro o tema.
Adoro-te, Ema!

A mala ia mais cheia.
Amá-la-ia mais cheia…

Ameia mais velha parece impossível.
Amei a mais velha, parece impossível!

Amor em feriado…
Amor enfreado…

In GOÊS, Ana, Aliás voltas sempre Ali às voltas sempre



A gigantesca pequena coisa


Num dia de verão, ela passou por ali, mesmo ao lado dos pés de Sebastião.

Uma menina tentou apanhá-la, como se apanha uma mosca.

A senhora do crocodilo ficou à porta, a esperar por ela, durante longos meses. Nunca viu chegar nada. Há pessoas que não sabem reconhecê-la.

Alguém a encontrou no meio da chuva, um minuto ou dois, no máximo. Esse minuto bastou-lhe.

Ela deslizou por baixo de uma mão, durante as férias grandes. Um ligeiro estremecimento e foi tudo, nada mais.

Um senhor já de idade encontrou-a dentro de um floco de neve, no frio que vinha de longe. Por um momento, voltou a sentir-se criança.

Muitas crianças, ao crescerem, descobrem que ela já não está na gaveta dos brinquedos, nem na caixa de bombons. »Ainda bem!» pensam elas.

É difícil acreditar, mas algumas pessoas tiveram muito medo dela. Essas pessoas fecharam as portas, afastaram os outros, construíram muros.

Um dia, como por brincadeira, ela escondeu-se numa lágrima e encheu um homem de nostalgia.

As pessoas encontraram-na nos cheiros, nos olhares. Nos braços dos outros.

Outros procuraram-na sem parar. Por vezes, tentam consegui-la com dinheiro ou fechá-la numa caixa. Mas é impossível retê-la. Ela passa apenas.

Esvoaçando como uma folha, pousa num ombro.
E voa logo, desparecendo de repente.

Ela estava ali, aninhada mesmo à frente do nosso nariz. E mais uma vez, não conseguimos vê-la.

Foi a esta pequena coisa invisível, mas gigantesca, que alguém um dia chamou felicidade.

In ALEMAGNA, BEATRICE, A gigantesca coisa pequena




O papagaio de Monsieur Hulot por David Merveille, a partir do filme homónimo de Jacques Tati

Um belo livro sem texto, cuja leitura se faz através da leitura das imagens. Com um protagonista hilariante, o leitor vive os episódios imprevisíveis deste senhor que provoca os maiores desastres por onde passa sem ter sequer consciência disso…Ideal para pais e filhos, pois divertem-se e riem todos, ao mesmo tempo que fomenta a imaginação e concentração de ambos. Contar a história deste livro? Essa é uma missão completamente impossível, já que os pormenores e as leituras ambíguas que ele suscita são prova de literariedade pura…

segunda-feira, 16 de junho de 2014

A Tertúlia Mais Pequena do Mundo acontece hoje...

Sempre em busca de surpreendentes, envolventes e inusitados espaços da cidade de Silves, esta noite a Tertúlia Mais Pequena do Mundo acontece, pelas 21h30, no novo restaurante "To-Do", sito na rua José Estêvão, junto ao rio (fica no 1.º andar do bar "O Cais", com entrada pela lateral). 

Será a penúltima tertúlia deste 1.º semestre de 2014, antes da pausa de Verão. Apareçam e desfrutem!


segunda-feira, 2 de junho de 2014

Textos lidos na última tertúlia

Na última tertúlia, realizada no Café da Dona Rosa, foram lidos/debatidos os seguintes textos:

» Maria do Carmo Rosa trouxe um texto de António Baeta publicado no seu blogue Local & Blogal. Baeta inspirou-se numa foto captada em Alte para uma espécie de devaneio em prosa poética que reflecte sobre a forma como olhamos para (as cores d')o mundo e para nós próprios.


Elucubração

O preto é o vazio, o nada, a ausência de luz.


O branco é o todo, o cheio, completo, com todas as cores fundidas e sintetizadas em si e de tal maneira repleto que parece precisar desta abertura para escoar.


Olhando pelo buraquinho, vê-se que lá dentro o interior é branco; continua completo, como se nada escoasse de dentro de si ou como se, mesmo que escoasse, não perdesse nada do seu todo. 


A penumbra marca o contorno, em tons de cinza, do escuro ao claro, do claro ao escuro.


Entre o branco e o preto uma linha bem demarcada, uma fronteira que não deixa lugar a dúvidas.


Nós somos cinzentos, penumbrosos; nem brancos, nem pretos. Cheios de dúvidas e receios.



***


» David Guerreiro inquietou a tertúlia com um curioso e provocante texto de Victor Hugo: 

O Homem e a Mulher

O homem é a mais elevada das criaturas. 

A mulher, o mais sublime dos ideais. 
Deus fez para o homem um trono; para a mulher fez um altar. 
O trono exalta e o altar santifica. 
O homem é o cérebro; a mulher, o coração. O cérebro produz a luz; o coração produz amor. A luz fecunda; o amor ressuscita. 
O homem é o génio; a mulher é o anjo. O génio é imensurável; o anjo é indefinível; 
A aspiração do homem é a suprema glória; a aspiração da mulher é a virtude extrema; A glória promove a grandeza e a virtude, a divindade. 
O homem tem a supremacia; a mulher, a preferência. A supremacia significa a força; a preferência representa o direito. 
O homem é forte pela razão; a mulher, invencível pelas lágrimas.
A razão convence e as lágrimas comovem. 
O homem é capaz de todos os heroísmos; a mulher, de todos os martírios. O heroísmo enobrece e o martírio purifica. 
O homem pensa e a mulher sonha. Pensar é ter uma larva no cérebro; sonhar é ter na fronte uma auréola. 
O homem é a águia que voa; a mulher, o rouxinol que canta. Voar é dominar o espaço e cantar é conquistar a alma. 
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra; a mulher, onde começa o céu. 

Victor Hugo [1802-1885]


***

» Miguel Amaral estreou-se na Tertúlia e revisitou entusiasticamente a tradição poética árabe, que está intimamente ligada à história de Silves. Leu o poema "À bem amada", de Ibn Ammar (séc.XI): 

Minha alma quer-te
Ainda que haja nisso uma tortura
E sigo-te na ânsia da procura.
Que estranho ser difícil, a nossa ligação
Se os desejos ambos concordam!
Que quereria mais meu coração
Quando amargurado te buscou em vão
E meus olhos te viram e amaram?
Allah bem sabe que não há razão
De vir aqui senão para te encontrar
Como desejo que o vigia não esteja
Em nosso encontro
Para os teus lábios doces eu provar
Para folgar no jardim da tua face
Para beber do copo de langor
Que teus olhos oferece.


Da obra (ver a imagem acima) - editada em 2002 pela Comissão de Coordenação da Região do Algarve -, de onde Miguel Amaral leu o referido poema, os mais curiosos podem encontrar este pequeno texto introdutório: 

Poesia do Gharb al-Andalus 

Os poetas árabes desta região a ocidente são numerosos e seus versos, na maioria dos casos, estão dispersos em compilações bibliográficas e históricas. É portanto difícil reunir a totalidade da poesia árabe composta pelos poetas e poetisas do ocidente peninsular e são muito raras a obras que reúnem compilações dessa poesia. Uma primeira leitura de certas compilações e fontes árabes permite observar que os literatos do Algarve exerceram uma grande influência e preponderância no Gharb al-Andalus. É difícil definir os intelectuais da época no que respeita às suas qualificações e habilitações. Nem sempre é fácil distinguir o jurista do teólogo, o político do filólogo, o historiador do geógrafo, o matemático do astrólogo ou do poeta. Havia sábios no Gharb al-Andalus que eram tudo isso ao mesmo tempo, porque o enciclopedismo era uma das características do "intelectual" da época medieval. [...] Nos poemas ou nos trechos de poesia [...] os temas tratados são vários e vão desde o louvor à natureza, da descrição geográfica ao amor, da guerra à sátira...

***

» Sónia Pereira brindou-nos com poesia, evocando o ambiente das antigas tertúlias citadinas através de um poema de António Barahona, e depois leu um singelo e belíssimo poema de António Ladeira.

Memória do Café Gelo 

à memória de Mário Cesariny de Vasconcelos

No Café Gelo, um grupo de poetas
demanda o elixir de vida curta,
de longa morte lenta e absoluta
e sílabas secretas.

Mesas de mármore, cadeiras sépia;
eis um café à beira do abismo:
conversas incendidas, sismo a sismo,
no desabar da época.

Revolta, ódio, fome, febre atroz:
no riso pode haver isto e tristeza
e grande amor do sonho, e da beleza
a que o grupo dá voz.

Não morreu este grupo: é perene
seu eco que deixou alto-relevo
numa parede-mestra, aonde subo
a pulso e tão solene!

De cima da parede espreito e vejo
uma mesa ocupada por nós todos:
assembleia de pássaros ignotos
em ilhas de desejo.

Vejo o corpo de glória de Lisboa
reclinado no ombro do Ernesto
para ler bem o seu ensaio honesto
dedicado a Pessoa.

Vejo o Herberto a discutir mui louco
com o Gonçalo Duarte e o D’Assumpção;
o Forte tem o coração na mão
esquerda e fala pouco.

Vejo o perfil do Saldanha da Gama,
o Virgílio em tríptico esboçado,
Raul Leal, d’Orpheu, Henoch irado
com lucidez de flama.

Vejo um adolescente que sou eu
e que aspirava tanto a morrer jovem,
sentado, entre nós outros, quase à margem
numa fresta de céu.

Manuel de Castro bebe o seu bagaço,
João Rodrigues faz desenho à pena
e Mário Cesariny põe em cena
a sua luz no espaço.

Passaram para mais de cinquenta anos
e uma tal luz persiste, não esmorece:
ilumina a leitura até ao vértice,
em versos soberanos.

Poeta engalanado de galfarros,
noctívago andador com pés de jade
e poesia, amor e liberdade,
e mais de mil cigarros.

Nas nuvens, que se formam ao redor,
repousam borboletas d’asas pandas,
inebriadas pelo fumo às ondas
e cada vez maior.

Rio de fumo espesso que atravessa
o jovem mágico, o das mãos de oiro,
esse que a remar não se cansa muito
e olha tão depressa

tal se fosse de moto a singrar
no Tejo até à foz, do céu suspenso
por um fio de voz, vindo do imenso
cintil azul do mar.

Na sombra, Cesariny d’alto porte,
agora dá mais luz, arde a cidade,
em poesia, amor e liberdade,
até matar a morte.

António Barahona
  
Tertúlia na Brasileira do Chiado (1928)


Café Gelo (Lisboa)

Há anjos

à memória de Mário Cesariny

Há anjos
que não compreendem o que dizemos
que não compreendem o próprio sentido
das palavras que, incessantemente, repetem
da esperança universal de que têm de nos convencer diariamente.

Há anjos que ressonam como foles
que andam cansados porque estão acordados há séculos
que precisam de ser transportados às costas
alimentados intravenosamente
protegidos da ferocidade do mundo.

Há anjos que lêem livros
anjos que escrevem poemas.

Há anjos que deixaram crescer a barba
que gostam de se deixar adormecer pelo comovente murmurar
das barbearias.

Há anjos que acabaram de nascer
que têm nomes vulgares
que viajam de avião
que até gostam de aeroportos.

Há anjos secretamente apaixonados por fadas,
por longos rios cheios de luzes
por súbitos glaciares.

Há anjos que são subcutâneos.

Há anjos que estão sempre com febre
que são ingénuos como enigmas.

Há anjos que vivem em arranha-céus,
que trabalham em andaimes
de onde às vezes se precipitam de propósito.

E há anjos que são funâmbulos.

Há anjos que talvez nos surpreendam
que às vezes nos saúdam, disfarçadamente, por entre a multidão
que abrem os olhos de noite.

Que, na sua voz interrompida, mutilada,
pedem calma.

Pedem muita calma.

António Ladeira
in RESUMO, a poesia em 2010, Lisboa: Assírio & Alvim, 2011, pp.19-20.

***


» Pedro Catarino abordou um texto de Gonçalo M. Tavares que reflecte, de forma muito pertinente, sobre os conceitos de durabilidade, consumo, (in)utilidade e imortalidade, contrapondo os elementos da natureza às obras/produtos (como a arte) concebidos pelo Homem.

Alimentos e arte

As coisas menos duráveis são, como lembra Arendt, citando Locke, os alimentos: coisas indispensáveis à subsistência do Homem, essas coisas que "se não forem consumidas pelo uso se deteriorarão e perecerão por si mesmas". 

Os alimentos são assim as coisas com o ciclo mais rápido de aparecimento-desaparecimento. Desde o momento em que são colocados no mundo até ao momento em que se deterioram e desaparecem, o tempo é mínimo. São coisas - os alimentos (não são acções ou discurso, isso é evidente) -, são coisas, sim, mas que têm dentro de si uma capacidade de autodestruição (capacidade ou falta, dependendo do ponto de vista): aparecem para serem consumidos e se forem consumidos desaparecem de imediato. 


A digestão corporal é um espantosa fábrica de fazer desaparecer as coisas designadas como alimentos; desaparecimento a que damos o nome de transformação, pois essa coisa não desaparece como num passe de mágica, desaparece porque as suas partes estruturais são destruídas (destruir - perder a estrutura), ou seja, desaparecem porque vão aparecer noutro lado, com outra forma. E se o alimento não desaparecer, se não se transformar pela via da digestão, desaparecerá, transformar-se-á pela via da decomposição natural; depois de uma pequena permanência neste mundo, as coisas como os alimentos, "retornam ao processo natural que as produziu" (Locke citado por Arendt).


Veja-se de imediato a diferença entre o pão, a maçã e uma mesa ou outro material feito pelo homem. Há, nota-se nas coisas feitas pelo homem, um certa obsessão pela duração. A mesa tem de durar; o edifício tem de durar, e sendo as obras de arte, neste campo, uma espécie de arquitectura inútil, artesanato sem uso prático, a sua maior utilidade reside precisamente na duração. A arte é tanto mais útil, diríamos, quanto mais dura. E, nesse sentido, ocupará o topo de entre as coisas feitas pelos humanos. No limite, a mais importante coisa feita pelo Homem será aquela que se aproxime da durabilidade máxima, a imortalidade.


in Atlas do corpo e da imaginação


***

» Lúcia Mendonça falou de mudança, daquilo que exigimos ao mundo, da forma como este pode ser incrivelmente generoso, da espera não passiva, do esforço e determinação que essa atitude implica, e leu a seguinte passagem da obra O livro dos grandes opostos filosóficos, de Oscar Brenifier: 

Esperar, é ser activo ou passivo?

Por vezes, queremos muito uma coisa, agimos para obtê-la, mas todos os nossos esforços parecem não surtir efeito. Outras vezes esperamos e as coisas acontecem. Parece-nos que a nossa passividade age.
Talvez seja necessário agirmos sobre nós próprios para sabermos esperar.



 ***

» Ana Paula Baptista revisitou José Saramago com uma reflexão sobre os limites da racionalidade e da irracionalidade, do instinto e da violência/maldade no que toca às relações humanas na sociedade actual. 

A Racionalidade Irracional

Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá "que coisa tão cruel". Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno. 

Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra? 

Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer. 

Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias. 

in Diálogos com José Saramago

José Saramago [1922-2010]


***

» Marco Mackaaij enquadrou e declamou três poemas, bem ao seu jeito, havendo muitos mais escritos seus a descobrir no fértil e inspirado blogue http://devesacreditarnaprimavera.blogspot.pt.

Tocando e podando

Às vezes apetece-me violino, 

outras vezes prefiro motosserra.
Somos uma orquestra de cordas,  
correntes, crinas e dentes.  

Às vezes desafina, outras vezes 

pára - sem gasolina - mas 
volto sempre, tocando    
e podando.  

M.M. (2014)


Arrumador de palavras

O que pode fazer 

um pobre arrumador de palavras?

Quando vê um verso vago,

chama a atenção:
assinala,
assobia,
levanta a mão.

E elas hesitam mas vêm,   

estacionam, 
e rogam pragas:
já tinham visto o lugar 
e agora devem pagar? 

Mas afinal,  

o que pode fazer 
um pobre arrumador de palavras?
Só se as riscar… 

M. M. (2014)


Carta a um amigo na cidade

Cuida bem de ti,
come refeições variadas,
legumes, fruta, leite,
não exageres com os ovos
mas de vez em quando um naquinho de carne no tacho.
Morrer não faz mal,
adoecer sim. 
Na terra vivemos no inferno,
depois há-de melhorar,
dizem. 
(Come uma talhadinha de melão
de vez em quando.)
Não leves sujeitos obscuros 
para a tua casota que se chama quarto,
custa-te outra vez um casaco 
ou dinheiro. 
Bate antes uma punheta. 
No entanto correr riscos 
é o sal da vida,
também para paneleiros.
Pouco a pouco envelhecemos ambos
com pensamentos sobre ontem 
e preocupações sobre amanhã.
Ainda é um caminho desgraçadamente longo,
não te esqueças que te amo. 
Põe um cachecol quando sais, 
é novembro,
está a ficar frio.
Mas sai dos eixos pelo menos.

                                   O teu Eli.


Brief aan een vriend in de stad
Eli Scheen (1914-1982)
Trad. M.M. (2014)

***

» Esmeralda Lopes Alves partilhou com a tertúlia um poema de pendor existencial escrito pela sua filha Inês Alves: 

Plácida contemplação 

Vezes sem conta
Imagem de mim mesma
Sentada à mesa
... Só... 
Apreciando a vida 
Que passa, corre e por ninguém espera!

Vezes sem conta 
Prisioneira do medo 
Chorei lágrimas de angústia
De ver pra sempre passar 
A mesma imagem de mim!

Hoje, 
Puxando os grilhões do medo...
Procuro a paz e a calma da alma
Na plácida contemplação 
Da imagem de mim mesma
Sentada à mesa
... Só... 
Apreciando a vida 
Que passa, corre e por ninguém espera!

Porque hoje
Aceitar a calma solitária do eu
É retirar fardos de palha
De uma consciência repletas de Se(s) e Porquê(s).
Porque rescrever o passado não posso!
E o hoje corre simplesmente como um rio
Pra um Futuro que desconheço!
Hoje, contemplo placidamente o rio que corre,
Para onde quer que seja que as água desaguem...


***

 » Paula Torres recordou um escritor maior em língua portuguesa, Jorge de Sena, cuja obra poética está sendo justa e finalmente reeditada em dois tomos. Um poema intemporal, pleno de lucidez, inquietação, sonho e espírito crítico:  

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. 
É possível, porque tudo é possível, que ele seja 
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, 
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém 
de nada haver que não seja simples e natural. 
Um mundo em que tudo seja permitido, 
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, 
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. 
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto 
o que vos interesse para viver. Tudo é possível, 
ainda quando lutemos, como devemos lutar, 
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, 
ou mais que qualquer delas uma fiel 
dedicação à honra de estar vivo. 
Um dia sabereis que mais que a humanidade 
não tem conta o número dos que pensaram assim, 
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, 
de insólito, de livre, de diferente, 
e foram sacrificados, torturados, espancados, 
e entregues hipocritamente à secular justiça, 
para que os liquidasse "com suma piedade e sem efusão de sangue". 
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, 
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas 
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, 
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, 
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, 
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória. 
Às vezes, por serem de uma raça, outras 
por serem de urna classe, expiaram todos 
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência 
de haver cometido. Mas também aconteceu 
e acontece que não foram mortos. 
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, 
aniquilando mansamente, delicadamente, 
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus. 
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, 
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha 
há mais de um século e que por violenta e injusta 
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, 
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria 
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos. 
Apenas um episódio, um episódio breve, 
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis) 
de ferro e de suor e sangue e algum sémen 
a caminho do mundo que vos sonho. 
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém 
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. 
É isto o que mais importa - essa alegria. 
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto 
não é senão essa alegria que vem 
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém 
está menos vivo ou sofre ou morre 
para que um só de vós resista um pouco mais 
à morte que é de todos e virá. 
Que tudo isto sabereis serenamente, 
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, 
e sobretudo sem desapego ou indiferença, 
ardentemente espero. Tanto sangue, 
tanta dor, tanta angústia, um dia 
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - 
não hão-de ser em vão. Confesso que 
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos 
de opressão e crueldade, hesito por momentos 
e uma amargura me submerge inconsolável. 
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, 
quem ressuscita esses milhões, quem restitui 
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado? 
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes 
aquele instante que não viveram, aquele objecto 
que não fruíram, aquele gesto 
de amor, que fariam "amanhã". 
E, por isso, o mesmo mundo que criemos 
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa 
que não é nossa, que nos é cedida 
para a guardarmos respeitosamente 
em memória do sangue que nos corre nas veias, 
da nossa carne que foi outra, do amor que 
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena [1919-1978]

“Os Fuzilamentos de Três de Maio”, de Francisco de Goya (1814)


***

» António Baeta surpreendeu os presentes com uma bonita imagem da Praça do Município (onde se localiza o café da Dona Rosa) da autoria de uma turista estrangeira de passagem, em tempos, pela cidade. Dissertou ainda sobre a beleza, simbolismo e carga histórico-cultural daquele espaço, nomeadamente enquanto lugar de (re)encontro, serenidade/apaziguamento e, sobretudo, enquanto precioso e singular ponto de confluência de várias dimensões marcantes da história da cidade: a ocupação islâmica, o centro de poder materializado no edifício dos Paços do Concelho e a significativa prosperidade da indústria corticeira patente em vários imóveis circundantes. 

Leu ainda, expressiva e sentidamente, o poema "Evocação de Silves", de Al-Mu'tamid, que tão caro lhe é: 

Saúda, por mim, Abû Bakr, 
os queridos lugares de Silves 
e diz-me se deles a saudade 
é tão grande quanto a minha. 
saúda o Palácio dos Balcões, 
da parte de quem nunca o esqueceu, 
morada de leões e de gazelas 
salas e sombras onde eu 
doce refúgio encontrava 
entre ancas opulentas 
e tão estreitas cinturas. 
moças níveas e morenas 
atravessavam-me a alma 
como brancas espadas 
como lanças escuras. 
ai quantas noites fiquei, 
lá no remanso do rio, 
preso nos jogos do amor 
com a da pulseira curva, 
igual aos meandros da água, 
enquanto o tempo passava... 
ela me servia vinho: 
o vinho do seu olhar, 
às vezes o do seu copo, 
e outras vezes o da boca. 
tangia-me o alaúde 
e eis que eu estremecia 
como se estivesse ouvindo 
tendões de colos cortados. 
mas se retirava as vestes 
grácil detalhe mostrando, 
era ramo de salgueiro 
que me abria o seu botão 
para ostentar a flor.

in Adalberto Alves, Al-Mu'tamid - Poeta do Destino, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.


***

» Augusta Panarra Inácio preparou uma tripla partilha, entre poesia, reflexão filosófica e prosa sobre o quotidiano humano (feito de prisões, viagens e liberdades).

Conquista

Livre não sou, que nem a própria vida 
Mo consente. 
Mas a minha aguerrida 
Teimosia 
É quebrar dia a dia 
Um grilhão da corrente. 

Livre não sou, mas quero a liberdade. 
Trago-a dentro de mim como um destino. 
E vão lá desdizer o sonho do menino 
Que se afogou e flutua 
Entre nenúfares de serenidade 
Depois de ter a lua! 

Miguel Torga, in Cântico do Homem

Miguel Torga [1907-1995]

O pensamento de Rudolf Steiner

Nego-me a submeter-me ao medo,
Que me tira a alegria de minha liberdade,
Que não me deixa arriscar nada,
Que me torna pequeno e mesquinho,
Que me amarra,
Que não me deixa ser directo e franco,
Que me persegue,
Que ocupa negativamente a minha imaginação,
Que sempre pinta visões sombrias.
No entanto não quero levantar barricadas por medo do medo,
Eu quero viver, não quero encerrar-me.
Não quero ser amigável por medo de ser sincero.
Quero pisar firme porque estou seguro,
E não para encobrir o medo.
E quando me calo, quero fazê-lo por amor
E não por temer as consequências de minhas palavras.

Não quero acreditar em algo só por medo de não acreditar.
Não quero filosofar por medo de que algo possa atingir-me de perto.
Não quero dobrar-me só porque tenho medo de não ser amável.
Não quero impor algo aos outros pelo medo de que possam impor algo a mim.
Por medo de errar não quero me tornar inactivo.
Não quero fugir de volta para o velho, o inaceitável, por medo de não me sentir seguro no novo.
Não quero fazer-me de importante porque tenho medo de ser ignorado.
Por convicção e amor quero fazer o que faço e deixar de fazer o que deixo de fazer.
Do medo quero arrancar o domínio e dá-lo ao amor.
E quero crer no reino que existe em mim.

Rudolf Steiner [1861-1925]

Pensem comigo. Pensamos melhor. 

Encontrámo-nos no Inverno passado. Embrenhado na leitura de um livro, nem deu pela minha aproximação. Não fosse a advertência do rapaz do café, nem teria ousadia para interromper a leitura:
– Está sempre a ler! Lê os livros todos que estão na biblioteca! (Esta biblioteca é uma sala de convívio com algumas prateleiras de livros, a grande maioria em línguas estrangeiras). Como também gosta de livros, vá falar com ele.
Cumprimentei-o em inglês e, meia atrapalhada, devo ter feito alusão aos livros.
Estava encetada a conversa. Apercebi-me de que também falava francês e, por ser mais fácil para mim, assim continuámos.
Quem lê muito, tem sempre de que falar. Os temas, versando o obscurantismo da Idade Média ou o Iluminismo do séc. XVIII, as consequências do aquecimento global, do projecto do genoma humano ou as causas dos problemas múltiplos da Europa e do mundo, ou outros, eram sempre interessantes. 
– Se preferir, podemos falar em português – disse. 
Soube que era holandês, que falava várias línguas e que gostava de conversar.
Ouvindo muito mais do que falando, comecei a olhar o relógio, discretamente. Discretamente, é quase impossível quando damos ao tempo medidas diferentes.
Duas palavras haviam de bastar para, a contragosto, se terminar a conversa: “hora” e “almoço”.
Dias depois, encontrámo-nos de novo. Desta vez, falava de viagens. De capitais deslumbrantes e de ilhas cujos nomes eu nunca tinha ouvido. Utilizei as mesmas palavras se bem que houvesse, da minha parte, a tolerância possível dos meus princípios para finalizar mais o monólogo do que o diálogo.
Não fiquei a saber o seu nome nem que profissão tinha. Disse-me que, para vencer a cultura do medo em que tinha sido criado, no final da adolescência se tinha tentado libertar através da leitura e das viagens.
Foi a minha vez de falar de leituras e de viagens dado que a minha imaginação não foi mais longe. Enquanto o fazia, apercebi-me de que o estava a impressionar. Afinal, o meu relato era ínfimo a comparar com o dele.
Perguntou-me se tinha horas certas para comer. Se lia ao fim do dia, antes de adormecer. Se viajava com itinerários predefinidos em viagens organizadas. E se voltava sempre a casa.
Disse a tudo que sim. E, como ainda não tinha compreendido que estávamos em mundos diferentes, perguntei-lhe para onde ia, depois de deixar o Algarve:
– Não sei! Nunca sei para onde vou…
Olhou-me fixamente. Ainda agora recordo a força das suas palavras que nem a cor clara dos seus olhos, abrandou:
– És uma prisioneira!

Augusta Panarra Inácio
26/05/2014
(texto escrito propositadamente para A Tertúlia Mais Pequena do Mundo – realizada em Silves no Café da Dona Rosa)

***

» Videlmina Reis desassossegou positivamente os tertuliantes com duas reflexões intemporais retiradas, respectivamente, do actor Charles Chaplin e do escritor Milan Kundera (da marcante obra A Insustentável Leveza do Ser): 

A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos.

 Charles Chaplin [1889-1977]

Pelo facto de a vida ser, relativamente, tão curta e não comportar "reprises", para emendarmos os nossos erros somos forçados a agir, na maior parte das vezes, por impulsos, em especial nos actos que tendem a determinar o nosso futuro. Somos como actores convocados a representar uma tragédia (ou comédia) sem ter feito um único ensaio, apenas com uma ligeira e apressada leitura do script. Nunca saberemos, de facto, se a intuição que nos levou a seguir certo sentimento foi correcta ou não. Não há tempo para essa verificação. Por isso, precisamos de cuidar das nossas emoções com um carinho muito especial.