sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Ontem no Quiosque Al'Mutamid

Em noite de Halloween aconteceu ontem mais uma Tertúlia Mais Pequena do Mundo.

Entre alguns pormenores alusivos à quadra simpaticamente preparados pela Maria do Carmo (dinamizadora do espaço), e aquecidos pelo café, chá, aperitivos e alguns copos de vinho, criou-se um clima de amena cavaqueira, havendo intervenções em várias frentes e registos, as quais se prolongaram noite adentro. 

No campo das sugestões pessoais, António Baeta Oliveira leu três microcontos da sua autoria ("Alienação", "De avião" e "Eu vi com os meus olhos: Tenho a certeza"), enquanto José Paulo e Esmeralda Alves partilharam poemas seus, respectivamente sobre o poder e a perigosa banalização das palavras nos dias que correm (e a ansiedade das mesmas em quebrar o sufoco) e a obra Divina Comédia, de Dante.  

Ainda na vertente das leituras literárias, Ana Cristina Féria apresentou dois textos em prosa de João Carlos Fraga, escritor seu amigo actualmente radicado na ilha do Faial (Açores), sendo que um deles - um excerto de uma carta trocada entre ambos em meados dos anos 80 do século passado - desencadeou várias reflexões, de foro psicológico e sociológico, em torno da complexidade da ideia de Solidão e dos seus múltiplos caminhos/interpretações individuais e colectivos. Ainda sobre este tema, Paula Torres leu um precioso poema de Guillevic, a partir de uma tradução de David Mourão Ferreira em 1965.

Sónia Pereira partilhou um curto mas incisivo texto de Gonçalo M. Tavares retirado da obra Investigações Novalis, enquanto Jacqueline Vangoidsenhoven brindou-nos com a leitura de um excerto da obra Lisboa Mítica e Literária, do espanhol Ángel Crespo, evocando uma cantiga de amigo do trovador João Zorro e citando uma interessante ideia de Gustavo de Matos: "as cidades são mulheres e cada uma tem a sua maneira própria de agradar". A propósito, recordaram-se textos de Al Berto, José Cardoso Pires e Sérgio Godinho sobre Lisboa. 

Paulo Pires leu dois microcontos de Paulo Kellerman ("Depois do sexo e antes de adormecer, citam-se os clássicos (III)" e "Peido") e sugeriu a provocatória obra Como falar dos livros que não lemos?, do francês Pierre Bayard, tendo-se gerado várias partilhas à volta da relação entre leitura, livros e cultura, e das várias formas de "ler" uma obra. Revisitou ainda algumas "premonições" muito certeiras de Natália Correia sobre os tempos actuais. 

No plano local António Guerreiro foi ao baú da memória buscar um relatório, datado de 1924, então redigido por um funcionário da Câmara Municipal de Silves para ser apresentado ao Executivo, do qual constavam vários dados e observações interessantes no que toca ao nível de desenvolvimento do concelho, às suas preocupações, aos caminhos a trilhar, etc., tendo também apresentado algumas reflexões sobre Silves, nomeadamente no que toca aos jovens, Cultura e não só, baseadas num artigo de imprensa que escreveu em 1993. 

Paula Torres, por seu lado, alargou a geografia da conversa e trouxe para a mesa uma reflexão sobre o Índice de Transparência das autarquias portuguesas a nível da sua gestão e intervenção, fruto de estudos e estatísticas publicados recentemente pela TIAC - Transparência e Integridade, Associação Cívica (disponíveis aqui), os quais mereceram várias reflexões e comentários a nível da forma como as instituições públicas disponibilizam (ou não) informação sobre o seu funcionamento aos cidadãos.

A nível da actualidade internacional, Paulo Pires chamou a atenção para uma série de plataformas online onde é possível frequentar cursos gratuitos e adquirir, assim, qualificações em várias áreas a partir de conteúdos disponibilizados por especialistas das melhores universidades mundiais. Há uma procura crescente deste formato, inclusive por utilizadores portugueses. Entre esses sites de educação de qualidade, conta-se um bastante usado por falantes em língua portuguesa: http://www.veduca.com.br

Além disso, Paulo Pires falou sobre um projecto inovador, com grande suporte tecnológico, que está a ser implementado em Londres e que consiste em ver a cidade pelo olhar dos pombos, aqui
A propósito, debateu-se a importância de reinventar o olhar e a percepção sobre a cidade de Silves, criando outras formas menos convencionais de mostrá-la aos residentes e aos turistas, tendo sido referidas algumas ideias/projectos que estão em gestação avançada. 








Relembramos que todos os textos lidos nesta tertúlia encontram-se afixados no interior do Quiosque Al-Mutamid e que os anteriores (referentes à primeira sessão) integram uma pasta disponível no local para quem quiser consultar e ler. 

Aqui ficam alguns exemplos:


ALIENAÇÃO


O constrangimento era absolutamente insuportável.

Não era senhor das suas próprias ideias. Nem a mais vulgar das decisões lhe era permitida. Até o simples ato de se deslocar era cometido de momento a momento. O guarda-roupa, dos sapatos ao casaco ou blusão, nem sequer lhe era proposto escolher. Roupa interior, nem vê-la. Podia frequentar um café ou um bar, ir ao cinema, ao ginásio, ao teatro, à ópera, a um concerto. Vibrar no futebol, numa corrida de cavalos, num combate de boxe. Confrontar-se com o perigo de um tiroteio de rua, do assalto a um banco. Passear pelo jardim ou exercitar-se na alameda. Visitar um museu ou uma galeria de arte. Trabalhar. Viajar. Nunca lhe competiria a menor das decisões.
Até o falar! Ainda por cima com palavras que não eram as suas. 
Falava por balões. 

Não tinha como desistir. Não havia como deixar de ser personagem de banda desenhada. 

(António Baeta Oliveira) 


[SEM TÍTULO]

Só. Mas quem diz: só?

Quem diz essa palavra 
Da cor da maldição?

Não faças confusão.

Aquele que vai só
Leva os outros consigo,

Por eles desespera 
De com eles esperar.

(Guillevic)


LINGUAGEM VIOLENTA: A ÚNICA

Linguagem violenta: a única.

A outra é: Sedução ou Submissão.
Ou seja, o mesmo medo: recear estar só. 
Quando se fala, fala-se. No alto da matéria e do espírito. 

(Gonçalo M. Tavares)


ESTÃO DESERTAS AS PALAVRAS

No deserto me encontro,
num fugaz medo,
num anseio permanente,
mas... ausente.

Podem ser, 
só algumas letras,
sílabas, palavras feitas
até...

Podem haver,
meras frases,
escritos, compêndios
e outros...

Que não chegam 
para descrever 
o pouco,
que o deserto
parece conter.

Mesmo que
muitos apareçam,
com o seu falar,
com o seu escrever...
o deserto, no total, 
não o exprimem.

Mas,
são as palavras
que melhor definem
a alegria, a dor
que se possa ter...

Mesmo que,
num deserto.
Mesmo que,
com muita gente.

Num mar imenso
posso-me encontrar;
num areal infindo,
até naufragar;
na água, feita pedra,
fria, incomensurável...

Não passo incólume,
no deserto.
Não chega o que digo,
Não chega o que escrevo,
para o descrever;
                     está... deserto.


o que sinto,
o que pressinto,
à palavra mais se aproxima.

Quem usa a palavra,
até quando finge,
há algo que aos outros
os toca, os atinge.

Estão desertas as palavras,
por saltarem...
das cartilhas,
dos livros, 
dos dicionários,
das enciclopédias...

E, 
tentarem amenizar
ou mesmo enaltecer
os nossos sentidos,
Quem sabe, alguma vez,
os nossos desertos.

Estão desertas as palavras.

(José Paulo) 


DEPOIS DO SEXO E ANTES DE ADORMECER, CITAM-SE OS CLÁSSICOS (III)

EU: Amas-me?
TU: Claro. Duvidas?
EU: Não, não duvido. Mas estava a pensar numa frase do Dostoievski, que não me sai da cabeça.
TU: Qual?
EU: Aquela em que diz que a verdadeira verdade é inverosímil, é preciso acrescentar um pouco de mentira à verdade para lhe dar maior plausibilidade. 
TU: Queres dizer que não basta dizer que te amo?
EU: Preferia que dissesses que me amas muito. O “muito” seria excessivo, talvez mentiroso; ou seja, daria credibilidade ao “amo-te”.
TU: És muito parvo, tu.

(Risos.) 

(Paulo Kellerman)

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