terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Balanço da última tertúlia [temas]


Na última Tertúlia de 2013 revisitamos os seguintes temas: 

. Os media e a sua influência social e ideológica

Paula Torres trouxe o livro A Tirania da Comunicação, de Ignacio Ramonet, e chamou a atenção para a relação entre valores como a democracia e a liberdade, de um lado, e as motivações, mecanismos e impacto das tecnologias de comunicação nesta world culture. Da referida obra foi lida a seguinte passagem: 

Dejectos telegénicos

Pode acontecer, todavia, que um acontecimento seja aguardado, programado, previsto há muito tempo. Neste caso, a encenação sobrepõe-se completamente. Não apenas na organização do discurso televisivo, mas ainda no desenrolar do próprio acontecimento. A lógica da televisão impõe-se então à da vida. A retransmissão é justa, verdadeira; a realidade é que é falsa. Pois as necessidades de uma boa encenação televisiva obrigam a modificar a ordem das coisas, mesmo as mais íntimas.
Umberto Eco, recordando a retransmissão televisiva do casamento do príncipe herdeiro de Inglaterra, Carlos, com Lady Diana, em 29 de Julho de 1981, e em particular o cortejo de cavaleiros, explicou até onde pode chegar o cuidado de alguns realizadores das notícias televisivas com a encenação: "Quem viu a televisão reparou que os excrementos (dos cavalos do cortejo) não eram escuro, nem castanho, nem irregular, antes se apresentavam sempre em todo o lado com um tom pastel, entre o bege e o amarelo, muito claro, de forma a não atraírem a atenção e a harmonizarem-se com as cores suaves das roupas femininas. Lemos depois, mas era fácil de imaginar, que os cavalos reais tinham sido alimentados com pílulas especiais durante uma semana, para que os excrementos tivessem uma cor telegénica. Nada devia ser deixado ao acaso, tudo estava subjugado pela retransmissão".

(Ignacio Ramonet)

Ainda sobre este temática foram recordados o teor e moldes em que foi divulgado pelos meios de comunicação o episódio - amplamente mediatizado - da professora e do aluno de uma escola primária em Silves, a qual envolve acusações de agressão e humilhação proferidas pela encarregada de educação da criança em causa relativamente à docente.

Esta notícia serviu ainda para uma reflexão sobre os vários factores que podem condicionar o processo educativo: as motivações e gostos dos alunos actuais; a cada vez maior carência de meios humanos e técnicos, em contexto escolar, para lidar com alunos com patologias mais graves ao nível psíquico; a polémica questão da união ou separação física entre alunos com elevada produtividade e outros com dificuldades muito acentuadas em termos pedagógicos; a manifesta falta de perfil de vários professores para o seu ofício; o alheamento de certos pais face ao percurso dos seus filhos; o decréscimo muito evidente dos níveis de disciplina na escola; e - associado a este último tópico - a posição fragilizada, em termos sociais/públicos, em que a figura do professor não poucas vezes se encontra presentemente ao nível da legitimidade para fazer o seu trabalho de uma forma competente, digna e eficaz.

Por último, focou-se a questão de o ambiente de crise, descontentamento e desencanto/revolta actualmente vigente no país poder constituir uma tentação perigosa, em termos de manipulação, para quem tem responsabilidades na transmissão de conteúdos noticiosos. Por outro lado, também é forçoso afirmar que a vertente de investigação, denúncia e sensibilização da opinião pública, por parte dos media, para situações graves e anómalas em termos éticos, sociais e económicos se justifica e impõe cada vez mais, dada a quantidade de casos existentes e dada, sobretudo, a inoperância/ineficácia/incapacidade/falta de vontade dos organismos competentes em resolvê-los. 


. O significado e alcance do conceito de "educação"

Ana Cristina Féria relembrou a acepção original da palavra "educação", isto para chamar a atenção para a crescente (e às vezes (in)consciente) banalização e/ou deturpação individual/colectiva dos sentidos originais de certas palavras (e, por consequência, ideias) com que lidamos quotidianamente. 

Para isso, recorreu a um Diccionario dos Synonymos da Lingua Portugueza de 1848 (de José Ignácio Roquete, editado em Paris) em que se associa o conceito de educação aos actos de desbastar e polir (a ignorância e a grosseria, entenda-se). Isto para frisar a dupla dimensão do acto educativo: instrução/ensino (apreensão de conteúdos) + ética/etiqueta/respeito. Lembrou ainda que proliferam os exemplos de indivíduos com elevada bagagem instrutiva e deficiente formação ética e moral, e que, ao invés, também há exemplos de indivíduos com elevada consciência ética ainda que dotados de um parco conhecimento teórico adquirido. 

Falou-se do afrouxamento dos valores a que se tem assistido na sociedade portuguesa nas últimas décadas (em aspectos como a honestidade, respeito e exigência), bem como de uma interpretação perversa e abusiva, que se tem vindo a instalar perigosamente, do conceito de liberdade individual e da própria ideia de democracia/democratização. Relacionou-se isso com aspectos variados como a mudança de regime político em 1974, a entrada na Comunidade Europeia e a profusa vinda de fundos financeiros para Portugal, e a própria postura da geração que fez o 25 de Abril relativamente à educação e futuro dos seus filhos.


. Eu, o outro, o sofrimento e o sentido da vida 

Dois textos da autoria de António Baeta (transcritos mais abaixo) suscitaram debate à volta da questão dos indivíduos (auto ou não) marginalizados e excluídos socialmente, bem como da massa crescente de pessoas desencantadas e desesperançadas com a sociedade e a vida. 

Sobre este tópico, Paulo Pires chamou a atenção para uma certa tendência psicossocial para intolerar e/ou afastar indivíduos psiquicamente fragilizados (com ou sem patologias), a qual parece ser, no fundo, um mecanismo de defesa e sobrevivência que se adopta - é discutível?; é legítimo? - para não sofrer esse "contágio" derivado da proximidade regular/excessiva. 

A propósito, falou-se ainda da capacidade mental e força psicológica - factor fundamental - necessárias ao indivíduo para enfrentar as dificuldades actuais, e da importância de pensar e encontrar um sentido para a vida. Nesta linha, Marco Mackaaij sugeriu a leitura da marcante obra O homem em busca de um sentido, de Viktor Frankl. Segue-se a sinopse: 



Nos seus momentos de maior sofrimento, no campo de concentração, o jovem psicoterapeuta Viktor E. Frankl entregava-se à memória da sua mulher - que estava grávida e, tal como ele, condenada a Auschwitz. Conversava com ela, evocava a sua imagem, e assim se mantinha vivo. Quando finalmente foi libertado, no fim da guerra, a mulher estava morta, tal como os pais e o irmão. No entanto, ele alimentara-se de outro sonho enquanto estava preso, e, este sim, viria a realizar-se: projectava-se no futuro, via-se a falar perante um público imaginário, e a explicar o seu método para enfrentar o maior dos horrores. E sobreviver. Viktor E. Frankl sobreviveu. E até morrer, aos 92 anos, divulgou por todo o mundo o método desenvolvido no campo de concentração - a Logoterapia. O psicoterapeuta descobriu que os sobreviventes eram aqueles que criavam para si próprios um objectivo, que encontravam um sentido futuro para a existência - fosse ele, por exemplo, cuidar de um filho ou escrever um livro. Em O Homem em Busca de um Sentido, escrito em 1946, o autor narra na primeira parte a sua dramática luta pela sobrevivência. E na segunda, em breves páginas, sintetiza os mais de 20 volumes ao longo dos quais desenvolveu o seu método - aplicável a qualquer pessoa, em qualquer circunstância da vida.


O tocante texto "O meu amigo Jojó", lido por António Baeta de forma emocionada, pode ser consultado em: http://www.calameo.com/read/000092543914692aedaa4

António Baeta leu também um outro texto que se enquadra nestas temáticas:

Por coisa de tão pouca monta renunciar-se, assim?!

Vi-o, sentado num dos bancos da álea da avenida sobre o rio.

Observei-o, absorto no airoso e conjugado voo de um bando de gaivotas, nas repentinas inflexões de rumo dos cardumes das jovens tainhas, no divertido e dinâmico deslizar dos patos em fila indiana, no súbito e inesperado esvoaçar de uma garça, no fluxo regular da maré, na enchente, arrastando consigo uma qualquer embalagem vazia.

Passei por ele, cumprimentando-o, sem resposta. Voltei a passar, vagaroso, obstruindo-lhe a paisagem. Olhou-me, mas no espelho do seu olhar só avistei a sua ausência.

Disse-me o Diogo que há mais de três semanas que a vida daquele homem tem esta aparência vegetativa: comer, dormir e ficar-se, desta maneira. Disse-me também que há pouco mais de um mês este mesmo homem lhe confidenciara a sua profunda desilusão com a situação que se vive no país e no mundo e lhe afirmara não confiar mais na humanidade.

O Diogo não entendia:

- «Por coisa de tão pouca monta renunciar-se, assim?!»



. Evocando Nelson Mandela 

A propósito do falecimento de Mandela, Ana Cristina Féria e Marco Mackaaij recordaram a figura que foi Prémio Nobel da Paz em 1993. 


Ana lembrou o poema "Invictus", do britânico William Ernest Henley, a que Mandela se ligou profundamente nos longos anos de clausura prisional, encontrando nas palavras do poeta força e esperança para se manter vivo (mais uma vez retomamos a questão da importância de encontrar um sentido para a vida). O incansável defensor dos direitos humanos contaria mais tarde que sempre que começava a esmorecer lia e relia este texto em busca de um "companheiro" para a dor:

Invictus 

Dentro da noite que me rodeia
Negra como um poço de lado a lado
Agradeço aos deuses que existem
por minha alma indomável

Sob as garras cruéis das circunstâncias
eu não tremo e nem me desespero
Sob os duros golpes do acaso
Minha cabeça sangra, mas continua erguida

Mais além deste lugar de lágrimas e ira,
Jazem os horrores da sombra.
Mas a ameaça dos anos,
Me encontra e me encontrará, sem medo.

Não importa quão estreito o portão
Quão repleta de castigo a sentença,
Eu sou o senhor de meu destino
Eu sou o capitão de minha alma. 


"São as raízes que mantêm a árvore de pé". Com este belíssimo verso Marco Mackaaij sintetiza lapidarmente a sua homenagem a Mandela, expressa neste poema de sua autoria, lido na Tertúlia:

Madiba

Em homenagem a Nelson Mandela - Madiba

Por muitos anéis que se formem no tronco
À volta do núcleo duro das convicções
E dos camaradas da primeira hora

Por muito que os ramos se estendam
Para tocar velhos inimigos
Na mudança dos ventos

Por muito que a copa se eleve da terra
Emanando coragem, perseverança e paz
Num halo irisado de esperanças

São as raízes que mantêm a árvore de pé

E no fim são elas que chamam o homem a si
Para mostrar os sonhos desabrochados
no seu entretanto
E devolver os outros que não deram flor
Por enquanto


. O Natal e as crianças 

Ana Paula Baptista partilhou, a propósito da quadra, um grande texto de José Saramago: um conto intitulado História de um muro branco e de uma neve preta, consultável aqui

O texto foi incluído na antologia Gloria in Excelsis (histórias portuguesas de Natal), coordenada por Vasco Graça Moura e inicialmente publicada pelo jornal Público. O texto lido por Ana Paula põe a tónica no cuidado a ter com as crianças e no facto de, no meio do fervilhar festivo e da agitação/frenesim consumista, por vezes ninguém estar pensando na criança e no seu bem-estar interior ("uma criança está sempre a nascer"). 



Marco Mackaaij leu ainda um poema seu alusivo à quadra, pleno de ironia: 

Natal

Começou a época da gula
As crianças salivam
Por uma fatia de bolo-rei
Os velhos babam-se
Por uma fatia de eternidade

Uns ainda não têm
Os dentes definitivos
Outros definitivamente
Já não têm dentes
Para la dolce vita

Mas todos querem mais
E mais e depois desta
Querem outra festa
Até à última migalha
Esperam pelo brinde


E trouxe um, datado de 12 de Maio de 1948, de Miguel Torga, inserto numa passagem dos seus diários: 

Puericultura em chão pobre

Há quem diga que são rosas,
Mas não são. 
Não há rosas andrajosas
Em botão.

Imagem mesmo que fosse, 
Não servia.
O amargo nunca é doce
Nem sequer na fantasia.

Chamem-lhes pois pelo nome,
Pelo seu nome infeliz
De seres humanos com fome
Na raiz.


António Baeta partilhou ainda com a Tertúlia um singelo e sensível poema de sua autoria, já antes publicado no seu blogue Local & Blogal:

Os raios de sol de outono

As folhas caducas que juncam o chão
são amantes
mortas 
pelo sol de outono
com seus raios preguiçosos
e lânguidos
da fadiga do estio

Quando a tarde cai
espreguiçam-se
pelos muros de cal 
onde buscam seu branco alento
para acordar 
com viço
pela manhã


(foto de António Baeta)


Para fechar, Marco Mackaaij, "intrigado" com o palavreado quotidiano nas ruas de Silves, pintou poeticamente um quadro humorístico e irónico, deambulando e recreando-se entre a História real e a imaginária (foi ainda uma oportunidade para muitos dos presentes conhecerem um novo termo: "cutucar"):

Era uma vez um Sábado de manhã

Sábado de manhã em frente às lojas
contam-se aventuras históricas
O gajo uma vez coiso

Para compensar o minimalismo da expressividade verbal
o contador vai cutucando com os nós dos dedos
Não vá o público estar-se nas tintas
para o gajo e o coiso

Enquanto os lábios folheiam o tosco dicionário
em exercícios de aquecimento
mantém-se o suspense até ao infinito
Santa lentidão que tantas vezes exaspera
mas também dá tempo para nos afastarmos
do dia-a-dia após o era uma vez

Assim o gajo pode ser Al-Mutamid
e o coiso o amor proibido
por uma gazela velada
nos jardins suspensos
sobre o Arade
(ou por Ibn Ammar, mas isso é outra história)

Ou Dom Sancho I
e o cerco aos malditos mouros
refugiados na Almedina
a mastigar barro para humedecer a boca
e as mães a esmagar o crânio dos filhos
contra as umbreiras das portas
para não os ver sofrer mais

Ou um operário corticeiro
e o interrogatório da PIDE
Delirante em espasmos eléctricos
vai revelando nomes em sânscrito
enquanto vislumbra uma alma amiga
na outra margem de outro rio

Ou...

Enfim, um cheque em branco
Desde que um gajo não pare
para ouvir o coiso...

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