segunda-feira, 3 de março de 2014

Balanço das tertúlias de Fevereiro (II)

» Tertúlia a 24 Fev / Café "O Cais" 

Paula Torres e Ana Paula Baptista revisitaram, com dois textos, o grande poeta brasileiro Manoel de Barros e a sua escrita-imaginário carregada de sentidos/sensações, sinestesias, sabores amazónicos e percepções inusitadas. Um poeta a descobrir pelos portugueses...

Manoel de Barros

O Fotógrafo

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre

as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada mais na existência do que na
pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia de
braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
mais justa para cobrir a sua noiva.
A foto saiu legal.

Obra poética do autor, reunida em 2011 pela Editorial Caminho

Entrada 

Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele. Eu conversava bobagens profundas com os sapos, com as águas e com as árvores. Meu avô abastecia a solidão. A natureza avançava nas minhas palavras tipo assim: O dia está frondoso em borboletas. No amanhecer o sol põe glórias no meu olho. O cinzento da tarde me empobrece. E o rio encosta as margens na minha voz. Essa fusão com a natureza tirava de mim a liberdade de pensar. Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem. Perdoem-me os leitores desta entrada mas vou copiar de mim alguns desenhos verbais que fiz para este livro. Acho-os como os impossíveis verossímeis de nosso mestre Aristóteles. Dou quatro exemplos: 1) É nos loucos que grassam luarais; 2) Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que os meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades.

***

Paulo Neto trouxe-nos Gonçalo M. Tavares e as suas desconcertantes/inquietantes visões do mundo e dos abismos do ser humano, retiradas da obra A perna esquerda de Paris seguido de Roland Barthes e Robert Musil:

2

A geometria era como desenhar (com outra forma) números - números com volume - e os números eram desenhos de nada.


Homenagem a Bertolt Brecht:

Eu te cumprimento, Bertolt Brecht, por teres feito literatura dentro da vida sem ser literatura imbecil nem de morte rápida.

Pois bem.

"A reputação dum único general
Chama-se: Dez Mil cadáveres."
Pois bem.

"Chamais grande ao grande, mas pequeno ao pequeno

Pois isto é necessário."
Pois bem.

E ainda isto:


"Muitos que caíram à água, alcançam a brincar a margem do rio.

Outros muito a custo e outros ainda não a alcançam mesmo.
Para o riso isso é indiferente.
Tu tens de alcançar a margem do rio."

Maria Bloom começou a nadar para alcançar a margem do rio.

Bloom passado dez minutos disse-lhe:

Maria, tu estás em cima da terra, porque nadas?

Para alcançar a margem do rio - disse Maria.
Bloom disse: 
Maria, se estás em terra e queres alcançar a margem do rio, talvez seja melhor fazeres a coisa andar.

Bertolt perguntou: 

"Há-de haver um passado quando
Há um futuro?"

E perguntou:

"Pois não seria
Então mais fácil que o Governo
Dissolvesse o Povo e
Elegesse outro?"


Maria Bloom tinha a cabeça curvada e o medo levantado. Gregor segurava um martelo e estava com ele parado de mais na mão. Quem tem assim a mão tão estática quer matar. 
Dois velhos, e o homem velho ainda tem ciúmes da mulher velha. Gregor acusa Maria de tentar seduzir outro homem. 
Maria Bloom chama louco a Gregor no único sítio onde tem coragem: na cabeça. Gregor segura um martelo e Maria viu esse homem matar outro homem e um animal, um burro. Foi há trinta anos, mas era este homem.
E a mão dele continua parada.

Gonçalo M. Tavares

***

Marco Mackaiij trouxe-nos, mais uma vez, literatura de outros países, desta feita dois textos do poeta moderno maior de Israel: Yehuda Amichai.

Um homem e a sua vida

Um homem não tem tempo na sua vida
para ter tempo para tudo.
Não tem momentos que cheguem para ter
momentos para todos os propósitos. Eclesiastes
está enganado acerca disto.

Um homem precisa de amar e odiar no mesmo instante,
de rir e chorar com os mesmos olhos,
com as mesmas mãos atirar e juntar pedras,
de fazer amor durante a guerra e guerra durante o amor.
E de odiar e perdoar e lembrar e esquecer,
de planear e confundir, de comer e digerir
que história
leva anos e anos a fazer.

Um homem não tem tempo.
Quando perde procura, quando encontra
esquece, quando esquece ama, quando ama
começa a esquecer.

E a sua alma é erudita, a sua alma
é profissional.
Só o seu corpo permanece sempre
um amador. Tenta e falha,
fica confuso, não aprende nada,
embriagado e cego nos seus prazeres
e nas suas mágoas.

Morrerá como um figo morre no Outono,
Enrugado e cheio de si e doce,
as folhas secando no chão,
os ramos nus apontando para o lugar
onde há tempo para tudo.

Trad.: Shlomit Keren Stein e Nuno Guerreiro

Yehuda Amichai (1924-2000)

Turistas (parte 2)

Uma vez estava eu sentado nos degraus junto a um portão da Torre de David, as minhas duas cestas pesadas colocadas no chão ao meu lado. Um grupo de turistas rodeava um guia e eu tornei-me o seu ponto de referência. "Estão a ver aquele homem com as cestas? Mesmo à direita da sua cabeça encontra-se um arco do período romano. Mesmo à direita da sua cabeça." "Mas ele está a mexer-se, ele está a mexer-se!" Eu disse comigo próprio: redenção só virá quando o guia lhes contar, "Estão a ver aquele arco do período romano? Não é importante, mas mesmo ao lado, à esquerda e um pouco abaixo, está sentado um homem que há pouco comprou fruta e vegetais para a sua família."


Tourists (part 2)
Yehuda Amichai
Trad.: Marco Mackaaij (2014)

***

Maria Lúcia Cabrita revisitou, em tom lúdico, a originalidade e criatividade da sabedoria popular com uma cega-rega cujo protagonista é uma peste mortífera que dá pelo curioso/intrigante nome de "tranglomanglo"*: 

O tranglomanglo

Minha mãe teve dez filhos 
todos dez dentro de um pote: 
deu o tranglomanglo neles, 
não ficaram senão nove.

Desses nove que ficaram 

foram amassar biscoito: 
deu o tranglomanglo neles, 
não ficaram senão oito.

Desses oito que ficaram 

foram pentear o tapete: 
deu o tranglomanglo neles, 
não ficaram senão sete.

Desses sete que ficaram 

foram esperar os reis: 
deu o tranglomanglo neles, 
não ficaram senão seis.

Desses seis que ficaram 

foram depenar um pinto: 
deu o tranglomanglo neles, 
não ficaram senão cinco.

Desses cinco que ficaram 

foram depenar um pato: 
deu o tranglomanglo neles, 
não ficaram senão quatro.

Desses quatro que ficaram 

foram matar uma rês: 
deu o tranglomanglo neles, 
não ficaram senão três.

Desses três que ficaram 

foram dar comida aos bois: 
deu o tranglomanglo neles, 
não ficaram senão dois.

Desses dois que ficaram 

foram matar um peru: 
deu o tranglomanglo neles, 
e não ficou senão um.

E esse um que ficou 

foi ver amassar o pão: 
deu o tranglomanglo nele, 
e acabou-se a geração.

*O vocábulo tanglomango (= tranglomanglo = tangomangro = tangromangro = trangromango = tângoro-mângoro = tângor-mangro = tangro-mangro, significando "bruxedo", "sortilégio", "malefício"), usado na expressão "dar o tranglomango", é de origem provavelmente onomatopaica. 

***

Paulo Pires trouxe três poemas de Bertolt Brecht para desencadear debate entre a Tertúlia sobre temas intemporais como a persistência, o individualismo e a solidariedade/altruísmo, a mobilização cívica e outras atitudes sociais ligadas à afirmação, negação ou indefinição perante causas que tocam a todos.

Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam muitos dias, e são muito bons;
Há homens que lutam muitos anos, e são melhores;
Mas há os que lutam toda a vida, esses são os imprescindíveis!

Bertolt Brecht (1898-1956)

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho o meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo. 



Quem fica em casa quando a luta começa*

Quem fica em casa quando a luta começa
E deixa os outros combater p'la sua causa
Tem de ter cuidado: pois
Quem não partilhou da luta
Partilhará da derrota.
Nem sequer evita a luta
Quem evitar a luta: pois
Lutará p'la causa do inimigo
Quem não lutou p'la própria causa.

*Faz parte do fragmento da "Cantata de Koloman-Wallisch". K. W., operário revolucionário, perdeu a vida durante as lutas dos trabalhadores austríacos em Fevereiro de 1934.

***

Carmo Rosa voltou aos tempos de infância recordando o seu (velhinho mas afectivo) livro de ensino primário, lendo, em particular, um texto - obviamente datado e bem ilustrativo da mentalidade e ideologia salazaristas da época - sobre um tema bem actual: a emigração. [cliquem nas imagens com texto para ler melhor]




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António Gonçalves partilhou com a Tertúlia um pertinente e actualíssimo cartoon (e comentário seu ao mesmo) sobre a Liberdade: para ler e pensar... [cliquem nas imagens com texto para ler melhor]




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