sexta-feira, 21 de março de 2014

Última tertúlia em balanço

» António Baeta trouxe-nos um texto seu para pensar, feito, metaforicamente, de rios e de margens, de inclusões e marginalizações, e da forma como cada indivíduo tem de se adaptar, lidar e (sobre)viver na grande corrente da vida e como esse caudal o vai moldando e (re)inventando. 

Atirados para a margem


O rio é uma corrente que, implacavelmente, arrasta ou contorna os obstáculos até atingir o mar ou, simplesmente, atira para as margens o que se afasta do seu curso principal.

O rio é um pouco como a vida; a nossa vida.

Dia após dia somos arrastados pelos condicionalismos e pelas nossa opções para os enfrentar, e se não seguirmos a corrente ver-nos-emos atirados para a margem.

Como um rio, a corrente é forte e condiciona logo à partida de acordo com a origem social, condicionando o rendimento nos estudos, mais tarde o tipo de emprego e o valor da remuneração, vem depois a idade, eventualmente o desemprego e somos, muitos de nós, inelutavelmente atirados para a margem.

Em tempo de crise a vida corre como um rio em hora de tempestade e tudo se acelera, arrastado pela corrente.

As margens enchem-se de detritos, dos que não encontram um emprego, dos que o perderam, dos que adoeceram, dos que envelheceram, dos que perderam a casa, os haveres, dos que foram atirados para margem.

E o rio continua inexoravelmente indiferente.

***

» Vera Silvestre estreou-se na Tertúlia com uma tocante (e tremendamente real) crónica de António Lobo Antunes intitulada "Love My Life", publicada na revista Visão em Março de 2013:

Conhecemo-nos faz muitos anos. Estava internado no hospital com um diagnóstico de esquizofrenia, ouvia vozes, passeava em solilóquios no pátio, nalgumas alturas era agressivo, noutras pedinchava cigarros, quase ninguém da família se interessava por ele ou o visitava, passou anos na enfermaria, dávamo-nos bem. Às vezes, quando estava mais violento, sentava-o no meu colo. Começava por oferecer porrada, acabava abraçado a mim, a chorar. Depois secava as lágrimas, levantava-se e punha-se na alheta:
- Você não é má pessoa, doutor 
garantia ele 
- Você não é má pessoa.
Ontem encontrei-o na rua. Um frio do caraças e ele vestido de trapos, com um barrete esquisitíssimo na cabeça. Eram duas e meia da tarde e não tinha comido nada:
- Ainda hoje não comi nada, doutor
de maneira que ficou à espera que eu acabasse o cigarro para se banquetear com a beata porque
- Uma beata conforta, doutor, você não imagina como uma beata conforta.
Dorme no degrau de uma igreja
(eu
- E a almofada?
ele
- Não preciso, ponho o cotovelo por baixo)
com um cobertor que traz num saco de pano a desfazer-se e que os colegas do degrau volta e meia lhe roubam. Alimenta-se de esmolas, não toma banho, passeia pelas ruas
(- Por acaso hoje está fresquinho)
não se queixa de nada. É daquelas pessoas que tem uma sobrancelha só, mesmo por cima do nariz os pêlos continuam, cheira mal que tresanda. As vozes, na sua cabeça, vão e vêm:
- Não me chateiam muito, não necessito de bater em ninguém 
e, entretanto, começa a chover e a gente os dois a molharmo-nos. Recuamos para debaixo de uma varanda. Declara
- No hospital era porreiro, comida quente, cama
e lá me vieram à cabeça os plátanos, a miséria daquilo, uma inscrição torta num muro: Love My Life. Sempre que a olhava passava-me. Love My Life. E gatos vadios, e pombos. Love My Life, porra. Ele para mim
- Uma coisa é certa, doutor, não sou infeliz.
Não sorri mas não é infeliz. Também não chora. Anda pela cidade
- Não tomo injecções nem comprimidos mas não faço mal a ninguém
até ao dia em que as vozes lhe dêem uma ordem qualquer
- Quero isto, quero aquilo
e ele se torne violento de novo. Meto a mão no bolso para lhe entregar dinheiro, ele recusa, com ar severo 
- Basta-me a sua amizade, doutor
acrescenta
- Os amigos são para outras coisas 
fixa-me com severidade, com censura. 
Respondo
- Quais outras coisas, parvalhão?
e amacia um bocado:
- Você sabe 
murmura ele
- Você sabe. 
E, de viés:
- Neste momento você topa tudo o que eu penso
e não topo nada do que ele pensa porque ele não está a pensar seja o que for. Mal terminei a frase e já está a atirar-me
- Ora vê?
a sublinhar
- Ora vê como topou logo que não penso?
Experimento
- E eu estou a pensar em quê?
a pensar na frase escrita na parede, Love My Life, que sempre me deu volta à tripa. Fica a meditar um minuto, olha-me, deixa de olhar-me, olha-me de novo
- Sei lá, você é doutor, tem poderes. E escreve livros, não é?
Junta à pergunta uma promessa solene
- Para a semana compro um porque até aos quinze anos andei a estudar.
Lembro-me mal da história da vida dele, tenho ideia da mãe, de tempos a tempos, com um cestinho de fruta. Uma senhora pobre, que pedia desculpa de existir: 
- Sou viúva.
Eu
- A mãezinha?
Pela primeira vez abriu-se:
- Está bem, doutor
a medir se avaliou em condições: acha que sim, abre-se mais:
- Desde há três anos no Alto de São João. Pelo menos quando a gente morre deixam de chatear-nos a molécula.
E aqui apareceu-me Voltaire na agonia. O padre insistia com ele para repudiar Satanás e Voltaire argumentou
- Nesta altura não me convém arranjar inimigos
mas talvez Satanás não chateie a molécula à viúva do cestinho da fruta e se reserve para moléculas de maior calibre. De qualquer maneira o filho anda a pau:
- Mais para o verão dou lá um salto para uma conversinha 
ou seja ela a insistir 
- Come um pêssego 
e ele
- Não estou em maré de pêssegos, senhora, o que me apetece são tremoços.
Disso recordo-me: quase todos os dias pedia tremoços ao enfermeiro, que era o nome que ele utilizava para os comprimidos:
- Se você fosse homem entregava-me uma mão cheia de tremoços para acalmar as ideias
e, de quando em quando, lá lhe entregavam um tremoço ou outro. Passada meia hora alongava-se no chão do pátio, tranquilo
- É cá uma paz que eu sinto
de olhos fechados e braços abertos, crucificado na terra:
- Cá uma paz, doutor.
Mas estamos de pé numa rua de bairro, chove, as árvores abanam, o vento mete-se pescoço abaixo, sob a gola. Estende-me a mão
- Vou indo
e lá vai indo com o saco, metido nos seus trapos confusos. Vira à direita, na esquina onde não há um prédio, há um pedaço de muro antigo e parece-me que escrito no muro, em maiúsculas muito maiores do que no hospital, Love My Life. Uma ocasião uma jornalista alemã veio entrevistar-me. Não tinha que ver com doenças, tinha que ver com livros. E foi estranhíssimo: assim que reparou nos internados, assim que leu a frase, desatou a chorar. Era uma mulher de cinquenta ou sessenta anos e desatou a chorar.
- Perdoe, perdoe
soluçava ela. Love My Life apenas. Porque seria?

António Lobo Antunes

***

» Fernanda Marcelino falou de viagens e do livro Planisfério Pessoal, de Gonçalo Cadilhe, lendo um excerto da obra do incansável andarilho-descobridor: 



E recomendou ainda dois blogues muito interessantes que aliam viagens, livros e cultura:


Sandra Nobre (projecto "Acordo Fotográfico")

Praia de Itapuã, em Salvador da Bahia - Brasil (blogue de Nilza Marcelino)


***

» Paula Torres trouxe-nos uma visão-resumo original, multi-religiosa, da MERDA (não se assustem), a partir da história "Quando um bobo se intromete", retirada da obra O Rei, o Sábio e o Bobo, de Shafique Keshavjee.    



***

» Marco Mackaaij partilhou mais poesia de Yehudah Amichai e não só, dando ainda a conhecer o seu novo blogue, onde podem encontrar poemas e textos curtos da sua autoria: http://devesacreditarnaprimavera.blogspot.pt/

O lugar onde temos razão 

Do lugar onde temos razão 
nunca hão-de crescer flores 
na primavera. 

O lugar onde temos razão 

é duro e espezinhado 
como um quintal.

Mas dúvidas e amores 

desenterram o mundo 
como uma toupeira, um arado.   
E um sussurro será ouvido no lugar 
onde outrora esteve 
a casa em ruínas.

"The Place Where We Are Right", de Yehudah Amichai
Trad. a partir da trad. inglesa de Chana Bloch e Stephen Mitchell: M. M. (2014) 


Deus tem dó de crianças no infantário

Deus tem dó de crianças no infantário.
Ele tem menos dó de crianças na escola.
E de adultos ele não tem dó nenhum, 
deixa-os sozinhos,
e por vezes eles têm que gatinhar 
na areia escaldante 
para chegarem ao posto de primeiros socorros  
cobertos de sangue. 

Mas talvez cuide de verdadeiros amantes

e tenha dó deles e lhes dê abrigo   
como uma árvore que cobre um velho
a dormir num banco da rua.

Talvez nós também lhes dêmos  

as últimas raras moedas de compaixão 
que a mãe nos legou, 
para que a felicidade deles nos proteja 
agora e em outros dias.  

"God Has Pity on Kindergarten Children", de Yehudah Amichai
Trad. a partir da trad. inglesa por Chana Bloch e Stephen Mitchell: M. M. (2014) 


O Casamento

Dei-te tudo:
um poema, o meu vencimento
e um filho; podes agora ver 
se a comida está pronta?

Het Huwelijk
A. Marja (1917-1964)
Trad: M. M.

***

» Mais poesia, desta vez pela pena de Esmeralda Lopes Alves, apaixonada pelas letras e seus labirintos e fascínios, e também dinamizadora do blogue http://palavrastemporarias.blogspot.pt/

Ei-nos no palácio sagrado
Lugar segredo
Onde a queda se fez homem.

- Ó Grande voz, 

Ergue-te,
Estremece o sono
Deste mundo que dorme.

- Saberás de mim...

Quando chegar o dia
Tu entenderás as águas
Porque o rio está em toda a parte.
Ele é nascente,
é foz, 
é catarata,
glaciar, 
ribeirinho ou oceano.
Ele é a neptuna voz ancestral
e tu
o barqueiro iludido!

- Ó meu segredo bem guardado,

Acode aos exilados
Que entoam cantos
Na diáspora da amargura.

Ísis, 10.3.2014


***

» Maria Lúcia Cabrita evocou o imaginário popular e a literatura oral algarvia recordando a "Lenda do Rio Arade":

Rio Arade, rio Arade, 
Diz a voz da tradição 
Que uma moira aqui chorou, 
Trazida por Rei Cristão...

Foi em tempos tão remotos, 

Em tempos que já lá vão, 
Que a luta era mais acesa 
Entre a Cruz e o Alcorão...

Era tudo fogo e ferro, 

Em chamas ardia o chão, 
E a blasfémia proclamada
Carecia de perdão...

E se Cristo alçava a cruz 

Aos valentes portugueses, 
Alá, de longe, incitava 
Os moiros, algumas vezes...

Os dias assim passavam, 

Tão negros, sem exagero, 
Que nada ali mais se ouvia 
Que as vozes do desespero...

Quebravam-se alfanjes moiros, 

Duras lanças portuguesas, 
Nesses combates hostis, 
Pelos montes, por devesas...

E diz a lenda, ela sempre, 

Que o sangue que o chão bebia 
Numa fonte mais à frente, 
Muitas vezes, apar’cia...

É por isso que ainda hoje, 

Até por gosto bizarro, 
Se apanho terra de Silves, 
É vermelha, cor de barro...

Vamos ao que mais importa 

Nesta longa narração: 
Saber o que aconteceu 
À moira e ao rei cristão...

Era um dia, ao sol poente 

Brilhavam nuvens nos céus, 
E El-Rei das hostes cristãs 
Rezava, sozinho, a Deus.

Senão quando, senão quando 

Junto de si apar’ceu 
Uma visão, a mais linda, 
Vinda lá dum outro céu.

Pronto El-Rei ali quedou 

A fervorosa oração; 
Logo, também, inquiriu: 
- Quem és tu, aparição?...

- Eu sou Fhatma, a enjeitada; 
Não tenho pai, nem irmãos, 
E assim me dou, pura e virgem, 
Ao forte Rei dos cristãos...

Levou-a El-Rei consigo, 

Na garupa do cavalo; 
Prestes, dela se tomou, 
Não seu Rei, mas seu Vassalo...

E, numa curva do rio, 
Num lugar que é Encherim, 
Entre flores de laranjeira, 
El-Rei lhe falou assim:

- Tu és flor ou és mulher?...

És verdade ou tentação?...
Tu, que és moira, quer’s ficar 
Aqui no meu coração?...

Era a moita só ternura, 

E sorria como ainda 
O guerreiro outra não vira 
Sorrir, morena e tão linda...

Mas Fhatma ali respondeu: 

- Sou mulher, mas, se me queres, 
Sou só tua, apenas tua; 
Faz de mim quanto quiseres!...

Abraços assim e beijos 

Não foram jamais trocados, 
Nos tempos vindos depois, 
Nem nos tempos já passados...

Porque o amor não era amor, 

Era coisa tão sem nome, 
Como a água que mata a sede 
Ou o pão que mata a fome.

Foi-se El-Rei de novo à guerra 

E a princesa, porque o era, 
Ficou-se, naquele vale, 
Sempre à espera, sempre à espera...

Passaram tempos vindouros, 

Longa noite, longo dia, 
Mas El-Rei não mais voltou 
Para ver quem não o via...

E a moira que filha fora 

Do príncipe Ben Ahr-ade, 
Foi-se, a pouco, ali finando, 
Só chorando de saudade...

Lágrimas do céu bebia, 

Nas longas noites chuvosas, 
Para as transformar, depois, 
Noutras bem mais copiosas...

Eis, assim, foi engrossando 

Aquela magra ribeira, 
Onde a moira se quedara, 
Mais chorosa, à sua beira...

Os tempos foram passando, 

Mas a ribeira era agora 
Um rio que ia morrer 
Noutras águas, mar em fora...

Logo o vulgo, sempre o vulgo, 

Depois, para a eternidade, 
Ali mesmo baptizou 
O rio, de Rio Arade...

Por isso, nos meus ouvidos, 

Em longas noites de v’rão, 
Ainda ouço alguém cantar 
Aquela estranha canção:

- Rio Arade, Rio Arade, 

Diz a voz da tradição 
Que uma moira aqui chorou, 
Trazida por Rei Cristão...

in Morais Lopes, Algarve: as Moiras Encantadas, s.l., edição do autor, 1995, pp.63-67.

A propósito, algumas fotos do Rio Arade/cidade de Silves em diferentes épocas:






***

» José Paulo Vieira lembrou os sinos e a sua simbologia e importância no quotidiano e imaginário populares, sobretudo nos meios interiores e em contextos mais conectados com a prática religiosa, trazendo-nos um poema seu inspirado no conhecido texto de Fernando Pessoa "Ó sino da minha aldeia".

Porque dobram a rebate os (ou estes) sinos?

- Não sei explicar o gosto que tenho pelos sinos...
mas, sinto que andam tristes,
estes sinos. - 

Os sinos de Portugal! - 

- Metal de bronze
quantos são? Milhões?!...
Todos sabem!

Os meses do ano - 

- são doze, não onze;
muitos os ladrões,
em nós jazem.

Carrilhões desta terra,

choram!
Os três cavalos
em trenó frio...

Um ano inteiro

Bem nos furtam - 
- Quarenta ou mais a sonegá-los,
Ali-Babá os aferiu!

Melopeia pungente

de diáfanos arpejos
pueris
queria eu para o meu país.

Ode não,

mas marcha fúnebre
fremente...
de mil anseios
vis,
badalam agora a repique
alvorotados
... estes sinos.

Fernando Pessoa [1888-1935]

Ó sino da minha aldeia 


Ó sino da minha aldeia,

Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,

Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto,

Quando passo triste e errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me sempre distante.

A cada pancada tua,

Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.


***

» Teresa Caldas também se estreou nas lides da Tertúlia, trazendo um pouco do imaginário e mundividência espirituais/filosóficos que fazem parte do seu percurso vivencial e profissional, neste caso com um pensamento, traduzido por si, da autoria de Kabir (um dos grandes poetas místicos da Índia medieval, que compôs poemas que evidenciam a fusão entre o movimento bhakti e o sufismo muçulmano):

Tenho estado a pensar na diferença entre a água e as ondas nela.
Subindo, a água continua a ser água, caindo é água também. Alguém me dá uma dica sobre como as separar?
Porque houve alguém que inventou a palavra "onda" sou obrigada a distingui-la da água?
Há um Ser Secreto dentro de nós;
Os planetas de todas as galáxias passam-lhe pela mão como contas.
É esse o colar de contas que devemos ver com um olhar luminoso. 

Kabir [1440-1518]


***

» Paulo Pires falou sobre visões de Deus e práticas religiosas, enfocando no ressurgimento dos movimentos ateístas e nas relações entre a religião, a morte e o riso, tendo como ponto de partida a conferência do escritor e humorista Ricardo Araújo Pereira proferida em Lisboa em 2010 a convite do padre José Tolentino Mendonça.

Estes tópicos mereceram alguma reflexão por parte do Sr. Padre Carlos Aquino, que explanou o seu ponto de vista e a sua forma de olhar para o papel e postura actuais da Igreja e para os múltiplos desafios que esta tem de encarar, sobretudo em contextos mais conservadores, defendendo uma visão mais aberta, solta, sorridente (menos cinzenta) e mais humanizada da religião e das concepções de divino/espiritual.

Ricardo Araújo Pereira e a Questão de Deus
Org.: Secretariado Nacional da Pastoral Cultura
(Capela do Rato, em Lisboa, a 11.3.2010)


***

» O trabalho poético de José Tolentino Mendonça foi recordado por Sónia Pereira, que leu dois poemas belíssimos deste singular padre-teólogo-poeta: 

Calle Principe 25

Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou


José Tolentino Mendonça

Da verdade do amor

Da verdade do amor se meditam 
relatos de viagens confissões 
e sempre excede a vida 
esse segredo que tanto desdém 
guarda de ser dito 

pouco importa em quantas derrotas 
te lançou 
as dores os naufrágios escondidos 
com eles aprendeste a navegação 
dos oceanos gelados 

não se deve explicar demasiado cedo 
atrás das coisas 
o seu brilho cresce 
sem rumor 

(a seguir à leitura destes poemas Lúcia Mendonça trouxe para a Tertúlia um/o seu silêncio)


***

» António Guerreiro partilhou fotos suas com todos os membros da Tertúlia, oferecendo uma a cada um. São trabalhos que ilustram o seu percurso fotográfico, em vários registos, ao longo dos anos. 
Deixamos dois exemplos, advertindo para o facto de a cor/tonalidade aqui apresentada (dado estas fotos terem sido digitalizadas para inserir aqui) poder não corresponder, em rigor, ao tratamento original das fotos em causa: 



***

» Ana Paula Baptista bebeu mais uma vez na obra de José Saramago e leu a crónica "O grupo", retirada da sua obra Deste Mundo e do Outro, tendo partilhado ainda um incontornável poema de José Gomes Ferreira:



  José Saramago [1922-2010]

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
à despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) - nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira [1900-1985]

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