sábado, 5 de abril de 2014

Balanço da última tertúlia

Aqui fica uma amostra  dos temas e textos abordados na última tertúlia realizada no Quiosque Al'Mutamid em Silves: 

» António Baeta trouxe três textos, entre poesia, digressão e reflexão cívica/evocação histórica (esta última plena de pertinência e actualidade no que toca à realidade silvense evidenciada nos últimos anos):

Ontem

Da janela escorria uma camisola ensanguentada.
Pingava na terra encharcando o vazio
Que se assomava por detrás das casas.
Três facadas na carne rasgando
Os tecidos nauseabundos, expulsando
O sangue em golfadas efervescentes.
A minha mãe já não mora aqui e o sangue,
Que também é o dela, cai no pântano
Morno cobrindo o chão da cozinha.
A camisola envenenando as ervas daninhas,
Alimentando os vermes que me consomem o corpo.
 Agarrem-no!, ecoou como lâmina zurzindo
O ar brutal do bairro sórdido, não há crime
Sem castigo!, berrou o homem sem significado
Que assistia a tudo.
Nunca um crime foi sentido por mim
Nas fronteiras da solidão, respondi eu
Cobrindo a retaguarda.
Ratazanas sem compromissos escapuliram-se
Nas sarjetas iluminadas pelo odor dos enjeitados.
O vizinho do 2.º dt.º deu a primeira facada.
As outras que me rasgaram a pele e trincharam os ossos
Foram, no calor da refrega, atribuídas a incertos.
Conhecidos mas não identificados nas complexas
Poeiras que ensandeciam a tarde. A camisola
Aspergindo o espetro rastejante da pobreza.
Nunca ninguém fugiu de si próprio deixando
Um rasto de informação apelando
Aos caçadores de infinitos
O odor que os levará ao covil da presa,
Ao definhar do ritual do fogo e do sangue
Que rege o ordálio crepitando nas mentes
Experimentadas no silêncio, na viagem
Interrompida por deus.
A multidão rumina dissolvendo as persianas
Ululantes das personalidades elementares.
O crime percorre as ruas por entre
Conceitos duvidosos e ideias lancinantes
Abandonadas pelos que temem os estrangeiros
Nascidos entre os nossos. A matéria
Que compõe os heróis regurgita no princípio
Da noite, cadinho onde se fundem as ilusões
E o crime assume a vertigem da virtude
Incontestável e una.
O sangue que brotoeja das feridas escancaradas
Sacraliza as ruas por onde prossigo procurando
A caverna dos prodígios labirínticos, a degeneração
Do corpo que reproduz o regresso ao fim.

Duma janela apontando a noite pinga
Uma camisola ensanguentada.

Vrsa 13/11/12
(poema de Vítor Cardeira)

(pintura de Rui Dias Simão)


A Boia

A boia, boia.

Presa a uma corrente metálica, oscila conforme a corrente do rio.

O local onde a boia está presa é mais fixo do que a própria boia, apesar da intenção de se manter a boia presa.

A boia assinala a presença de algo que se quer saber onde se encontra, mas a boia não se encontra no local preciso que se pretende identificar através da posição da boia.

Já tinham pensado nisto? Eu ainda não e provavelmente nunca chegaria a pensar sobre tal coisa se não tivesse resolvido escrever sobre a boia que resolvi fotografar.

Mas o facto é que isto acontece com muitas e variadas coisas. 

Pensemos, por exemplo, no governo, que nos deveria governar e nos desgoverna, subtraindo rendimento ao nosso rendimento, em nome do nosso governo, para com tal subtração, supostamente, nos governar melhor, mas não governa.

Ora o governo não governa, mas a boia boia. Certo?!

Viva a boia! Abaixo o governo!



Quase se pode dizer: "Esta cidade vegeta".

Esta ruína foi um dia, em finais do séc. XIX, a maior unidade industrial do país.

Não com esta dimensão, houve muitas outras fábricas, de dimensão considerável, nesta localidade - Silves.

A macrocefalia da capital acabou por chamar a si todas estas fábricas a instalar-se na margem sul do Tejo. A Salazar também não deveria agradar esta elevada concentração operária, com experiência de luta acumulada sob a ideologia do anarco-sindicalismo e distante dos grandes meios de repressão.

Para os proprietários destas fábricas, os custos de exportação, com transporte até à capital, não lhes traziam vantagem. Havia também uma crise internacional na sequência de duas guerras mundiais.

Uma após outra, as fábricas começaram a incendiar-se, os proprietários obtinham o valor do seguro e partiam a instalar a sua fábrica na região da macrocéfala Lisboa, levando consigo todos os especialistas, da área da produção como da área administrativa, num sangradouro que levou as fábricas, os operários, o capital e o trabalho.

Os grandes e belos edifícios que ainda hoje permanecem no âmago da baixa silvense, bem como praticamente toda a rua Cândido dos Reis, erguida na altura da implantação industrial, com fábricas e residências de proprietários e quadros administrativos, e os bairros operários das cercanias, são fruto dessa época de esplendor.

Hoje já não há indústria corticeira.

Assistimos à degradação das fábricas abandonadas, receamos o futuro da maioria dos edifícios de maior porte e passeamo-nos tristemente numa cidade sem vida e sem perspetiva de futuro, que se vai entretanto mantendo com base na vida administrativa das escolas, do tribunal, das finanças, da autarquia, dos serviços e de restaurantes que servem parte desta gente que nem sequer vive na cidade.

Há por aí um turismozinho de meia tigela, que vem de autocarro e até de barco, que sobe ao Castelo e à Sé e se vai embora.

Ficam umas migalhas de gente no hotel ou caravanistas, nestes últimos tempos, enquanto a cidade dorme, embalada na nostalgia do seu passado ou no mito do desassoreamento do rio, que quando muito traria mais uns quantos turistas além dos dos autocarros e dos que já vêm de barco.

É a cidade que precisa de mudar por dentro.

Falta-lhe uma estratégia, como a que, no passado, levou à implantação da indústria corticeira. 

No Algarve, com uma Universidade na região, estou em crer que se poderia dar por bem empregue o investimento num estudo estratégico.

Esta é a minha proposta e é gritada com urgência. Há por aí mais alguma? 

Ruína de Fábrica de Cortiça em Silves.
A Natureza toma conta do abandono

***

» Maria do Carmo Rosa partilhou prosa poética do autor Rui Miguel Mendonça, publicado online na conta de facebook Entrar Nas Linhas, que se define como "um espaço de expansão de ideias e sentimentos. Um blogue de pensamento absolutamente livre, sem restrições ou condicionamentos à criatividade, à opinião, à reflexão. Sintam-se confortáveis em escrever o que vos apetecer, sobre o que vos apetecer, e como vos apetecer. Mas atenção: liberdade de discussão e debate, mas nunca com recurso à ofensa! No entanto, o vernáculo será permitido nos textos. O vernáculo liberta e alivia tensões!":

Numa tarde de chuva

E então percebeu que há pessoas que brilham sem ser estrela; percebeu que há silêncios que separam sem ser quilómetros. Percebeu. A ouvir uma chuva de sexta-feira à tarde. A vida é pouco assim, sem sentido, e vivemos desesperados a dar-lhe um sentido. Um sentido, com nome e apelidos, tão possível. Um sentido que nos abrace durante as noites. Um sentido que não perca prioridade quando descobrir as cicatrizes que compartilhamos com nós próprios.

E então percebeu que apaixonar-se era uma necessidade tão importante como respirar. Morreria se não respirasse. Morreria se não amasse. Percebeu. O amor era isto. E percebeu que as pessoas se habituaram a maquilhar os sentimentos. Têm medo. E percebeu que algumas pessoas se habituaram a gozar com o amor. Têm medo. Deitado no sofá da sala, ouviu um terapeuta das emoções falar na televisão, num daqueles programas de semana 

à tarde, ouviu, e que afinal não há nada pior do que alguém que te rompa o mais bonito de ti, alguém que destrói as razões do teu sorrir, os sonhos, as esperanças, alguém que te tire as vontades. Ouviu. E assim que nos vestimos com um bocadinho de orgulho e passamos a olhar tudo à distância, tateamos o precipício antes de saltar. Ouviu. Se vamos morrer, então que se morra por alguém que saiba chorar-nos.

O desamor é inevitável. Às vezes é. Percebeu. O melhor era mesmo escolher por quem nos apaixonar. O desamor é inevitável. Às vezes é. E o homem terminou a falar sobre a capacidade de esquecermos as pessoas, a natureza das recordações (a melhor forma de esquecer alguém que nos dói lembrar é chegar à conclusão que não merecemos isso; a melhor forma de esquecer alguém que nos dói lembrar é chegar à conclusão que merecemos algo mais). Percebeu. Antes sangrar por alguém que logo venha a curar-nos. A vida não é assim tão larga. A vida não dura assim tanto. Há que sorrir nos amanheceres, mesmo que a chuva, mesmo que a saudade partilhada com os lençóis. As coisas chegam quando menos as esperas. As coisas chegam quando menos desesperas. Às vezes só demoram um pouco mais a chegar. Mas chegam.

E então percebeu. Desligou a televisão, levantou-se do sofá, abriu a janela e gritou para a chuva: 

Continuo a querer toda a gente que quis na minha vida. Continuo. Mas só até o amor levar-me de urgência e internar-me nos cuidados permanentes. Cuidado, amor da minha vida, quando vieres pode ser para sempre.


***

» Paulo Pires revisitou um poema incontornável (e inquietante) de Pedro Mexia, a partir do qual se gerou alguma reflexão e debate entre os presentes: 

As gavetas

Não deves abrir as gavetas
fechadas: por alguma razão as trancaram,
e teres descoberto agora
a chave é um acaso que podes ignorar.
Dentro das gavetas sabes o que encontras:
mentiras. Muitas mentiras de papel,
fotografias, objectos.
Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes.
As gavetas foram sendo preenchidas
por gente tão fraca como tu
e foram fechadas por alguém mais sábio que tu.
Há um mês ou um século, não importa.

(in Duplo Império)

Pedro Mexia

***

» Ana Paula Baptista lembrou Manuel António Pina, figura maior da cultura portuguesa, através de um poema que reflecte sobre as palavras, o seu poder e a construção do silêncio com as mesmas (seguido de uma anotação que respigámos no também poeta Luís Quintais):

Ludwig W. em 1951

«As palavras (o tempo e os livros que
foram precisos para aqui chegar,
ao sítio do primeiro poema!)
são apenas seres deste mundo,
insubstanciais seres, incapazes também eles de compreender,
falando desamparadamente diante do mundo.
As palavras não chegam,
a palavra azul não chega,
a palavra dor não chega.
Como falaremos com tantas palavras? Com que palavras e sem que palavras?

E, no entanto, é à sua volta
que se articula, balbuciante,
o enigma do mundo.
Não temos mais nada, e com tão pouco
havemos de amar e de ser amados,
e de nos conformar à vida e à morte,
e ao desespero, e à alegria,
havemos de comer e de vestir,
e de saber e de não saber,
e até o silêncio, se é possível o silêncio,
havemos de, penosamente, com as nossas palavras construí-lo.

Teremos então, enfim, uma casa onde morar
e uma cama onde dormir
e um sono onde coincidiremos
com a nossa vida,
um sono coerente e silencioso,
uma palavra só, sem voz, inarticulável,
anterior e exterior,
como um limite tendendo para destino nenhum
e para palavra nenhuma.»

"Um nome, uma data. Ludwig Wittgenstein morreu em 1951, justamente. E o poema de Manuel António Pina (publicado pela primeira vez em Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança de 1999, pp. 10-11) devolve-nos o coincidente limite: a morte e a impossibilidade de dizer. O poema é aqui a linguagem da morte, ou a sua alegoria, porque é a linguagem do que não pode ser dito ou tão-só do reconhecimento de que só podemos balbuciar mesmo quando julgamos dizer. Estranha esta coincidência que faz da palavra e da morte o mesmo tema. Injustificável esta exigência a que o poema dá corpo de dizer o que à partida não poderá ser dito nunca. Assumir isso, e porém procurá-lo, como se o poema fosse apenas o vestígio disso. Há uma melancolia extrema na poesia de MAP que tem a ver com o modo como ela nos reenvia para a consciência do seu desamparo. LW é uma figura de eleição para compreendermos isto, porque em LW o drama que se encena é o do limite da palavra: sem ela não há azul, mas nem todo o azul do mundo cabe nela, sem ela não há dor, mas nem toda a dor do mundo cabe nela."
(Luís Quintais)



Ana Paula leu ainda um excerto de um artigo sobre a questão, polémica, da eutanásia (da qual é defensora), no âmbito do prefácio que Maria Filomena Mónica fez ao livro Morte assistida, da jornalista Lucília Galha: "os desejos e os receios de sete doentes portugueses confrontados com o fim". 

   

***

» Paula Torres foi à sua biblioteca pessoal buscar a obra Antologia de Poesia Universitária, da colecção "Novos Poetas", organizada em 1962-1963 por Alfredo Barroso, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, J. M. Vieira da Luz e Rui Namorado para a então reputada editora Portugália. Leu um poema de António Augusto Menano intitulado "Mensagem": 

Transita no espaço o planeta
vendendo aos homens todos os conceitos
da permuta
com que o desespero sabiamente
redescobre o sabor nirvânico 
da cicuta. 

Terra e água unem-se ao fogo
e a crença adolescente do passante
acredita na claridade do sorriso
e vai no jogo. 

Mas se a esfera é redonda
(e como tal manhosa e indiferente)
tudo se resume na procura
de um vértice independente.

Sejamos pois o alimento
que os frutos e as crianças anunciam
e assassinemos a palavra
indiferente. 

seduzir os homens pelo tempo
em que brilhe fútil o passeio
e seja notável o medo 
como meio

sacudir o pensamento
como mosquito incómodo e pertinaz
e condecorar a plumagem
que imita a paz

dar à esperança a suavidade da monção
imitando inteligentemente 
a prudência, a temperança
e o pão

transformar o homem em palhaço
ou esqueleto vagabundo
dizendo a sorrir
que é para salvar o mundo

desistam que o TEMPO É VIVO
E VINGA-SE.


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