segunda-feira, 2 de junho de 2014

Textos lidos na última tertúlia

Na última tertúlia, realizada no Café da Dona Rosa, foram lidos/debatidos os seguintes textos:

» Maria do Carmo Rosa trouxe um texto de António Baeta publicado no seu blogue Local & Blogal. Baeta inspirou-se numa foto captada em Alte para uma espécie de devaneio em prosa poética que reflecte sobre a forma como olhamos para (as cores d')o mundo e para nós próprios.


Elucubração

O preto é o vazio, o nada, a ausência de luz.


O branco é o todo, o cheio, completo, com todas as cores fundidas e sintetizadas em si e de tal maneira repleto que parece precisar desta abertura para escoar.


Olhando pelo buraquinho, vê-se que lá dentro o interior é branco; continua completo, como se nada escoasse de dentro de si ou como se, mesmo que escoasse, não perdesse nada do seu todo. 


A penumbra marca o contorno, em tons de cinza, do escuro ao claro, do claro ao escuro.


Entre o branco e o preto uma linha bem demarcada, uma fronteira que não deixa lugar a dúvidas.


Nós somos cinzentos, penumbrosos; nem brancos, nem pretos. Cheios de dúvidas e receios.



***


» David Guerreiro inquietou a tertúlia com um curioso e provocante texto de Victor Hugo: 

O Homem e a Mulher

O homem é a mais elevada das criaturas. 

A mulher, o mais sublime dos ideais. 
Deus fez para o homem um trono; para a mulher fez um altar. 
O trono exalta e o altar santifica. 
O homem é o cérebro; a mulher, o coração. O cérebro produz a luz; o coração produz amor. A luz fecunda; o amor ressuscita. 
O homem é o génio; a mulher é o anjo. O génio é imensurável; o anjo é indefinível; 
A aspiração do homem é a suprema glória; a aspiração da mulher é a virtude extrema; A glória promove a grandeza e a virtude, a divindade. 
O homem tem a supremacia; a mulher, a preferência. A supremacia significa a força; a preferência representa o direito. 
O homem é forte pela razão; a mulher, invencível pelas lágrimas.
A razão convence e as lágrimas comovem. 
O homem é capaz de todos os heroísmos; a mulher, de todos os martírios. O heroísmo enobrece e o martírio purifica. 
O homem pensa e a mulher sonha. Pensar é ter uma larva no cérebro; sonhar é ter na fronte uma auréola. 
O homem é a águia que voa; a mulher, o rouxinol que canta. Voar é dominar o espaço e cantar é conquistar a alma. 
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra; a mulher, onde começa o céu. 

Victor Hugo [1802-1885]


***

» Miguel Amaral estreou-se na Tertúlia e revisitou entusiasticamente a tradição poética árabe, que está intimamente ligada à história de Silves. Leu o poema "À bem amada", de Ibn Ammar (séc.XI): 

Minha alma quer-te
Ainda que haja nisso uma tortura
E sigo-te na ânsia da procura.
Que estranho ser difícil, a nossa ligação
Se os desejos ambos concordam!
Que quereria mais meu coração
Quando amargurado te buscou em vão
E meus olhos te viram e amaram?
Allah bem sabe que não há razão
De vir aqui senão para te encontrar
Como desejo que o vigia não esteja
Em nosso encontro
Para os teus lábios doces eu provar
Para folgar no jardim da tua face
Para beber do copo de langor
Que teus olhos oferece.


Da obra (ver a imagem acima) - editada em 2002 pela Comissão de Coordenação da Região do Algarve -, de onde Miguel Amaral leu o referido poema, os mais curiosos podem encontrar este pequeno texto introdutório: 

Poesia do Gharb al-Andalus 

Os poetas árabes desta região a ocidente são numerosos e seus versos, na maioria dos casos, estão dispersos em compilações bibliográficas e históricas. É portanto difícil reunir a totalidade da poesia árabe composta pelos poetas e poetisas do ocidente peninsular e são muito raras a obras que reúnem compilações dessa poesia. Uma primeira leitura de certas compilações e fontes árabes permite observar que os literatos do Algarve exerceram uma grande influência e preponderância no Gharb al-Andalus. É difícil definir os intelectuais da época no que respeita às suas qualificações e habilitações. Nem sempre é fácil distinguir o jurista do teólogo, o político do filólogo, o historiador do geógrafo, o matemático do astrólogo ou do poeta. Havia sábios no Gharb al-Andalus que eram tudo isso ao mesmo tempo, porque o enciclopedismo era uma das características do "intelectual" da época medieval. [...] Nos poemas ou nos trechos de poesia [...] os temas tratados são vários e vão desde o louvor à natureza, da descrição geográfica ao amor, da guerra à sátira...

***

» Sónia Pereira brindou-nos com poesia, evocando o ambiente das antigas tertúlias citadinas através de um poema de António Barahona, e depois leu um singelo e belíssimo poema de António Ladeira.

Memória do Café Gelo 

à memória de Mário Cesariny de Vasconcelos

No Café Gelo, um grupo de poetas
demanda o elixir de vida curta,
de longa morte lenta e absoluta
e sílabas secretas.

Mesas de mármore, cadeiras sépia;
eis um café à beira do abismo:
conversas incendidas, sismo a sismo,
no desabar da época.

Revolta, ódio, fome, febre atroz:
no riso pode haver isto e tristeza
e grande amor do sonho, e da beleza
a que o grupo dá voz.

Não morreu este grupo: é perene
seu eco que deixou alto-relevo
numa parede-mestra, aonde subo
a pulso e tão solene!

De cima da parede espreito e vejo
uma mesa ocupada por nós todos:
assembleia de pássaros ignotos
em ilhas de desejo.

Vejo o corpo de glória de Lisboa
reclinado no ombro do Ernesto
para ler bem o seu ensaio honesto
dedicado a Pessoa.

Vejo o Herberto a discutir mui louco
com o Gonçalo Duarte e o D’Assumpção;
o Forte tem o coração na mão
esquerda e fala pouco.

Vejo o perfil do Saldanha da Gama,
o Virgílio em tríptico esboçado,
Raul Leal, d’Orpheu, Henoch irado
com lucidez de flama.

Vejo um adolescente que sou eu
e que aspirava tanto a morrer jovem,
sentado, entre nós outros, quase à margem
numa fresta de céu.

Manuel de Castro bebe o seu bagaço,
João Rodrigues faz desenho à pena
e Mário Cesariny põe em cena
a sua luz no espaço.

Passaram para mais de cinquenta anos
e uma tal luz persiste, não esmorece:
ilumina a leitura até ao vértice,
em versos soberanos.

Poeta engalanado de galfarros,
noctívago andador com pés de jade
e poesia, amor e liberdade,
e mais de mil cigarros.

Nas nuvens, que se formam ao redor,
repousam borboletas d’asas pandas,
inebriadas pelo fumo às ondas
e cada vez maior.

Rio de fumo espesso que atravessa
o jovem mágico, o das mãos de oiro,
esse que a remar não se cansa muito
e olha tão depressa

tal se fosse de moto a singrar
no Tejo até à foz, do céu suspenso
por um fio de voz, vindo do imenso
cintil azul do mar.

Na sombra, Cesariny d’alto porte,
agora dá mais luz, arde a cidade,
em poesia, amor e liberdade,
até matar a morte.

António Barahona
  
Tertúlia na Brasileira do Chiado (1928)


Café Gelo (Lisboa)

Há anjos

à memória de Mário Cesariny

Há anjos
que não compreendem o que dizemos
que não compreendem o próprio sentido
das palavras que, incessantemente, repetem
da esperança universal de que têm de nos convencer diariamente.

Há anjos que ressonam como foles
que andam cansados porque estão acordados há séculos
que precisam de ser transportados às costas
alimentados intravenosamente
protegidos da ferocidade do mundo.

Há anjos que lêem livros
anjos que escrevem poemas.

Há anjos que deixaram crescer a barba
que gostam de se deixar adormecer pelo comovente murmurar
das barbearias.

Há anjos que acabaram de nascer
que têm nomes vulgares
que viajam de avião
que até gostam de aeroportos.

Há anjos secretamente apaixonados por fadas,
por longos rios cheios de luzes
por súbitos glaciares.

Há anjos que são subcutâneos.

Há anjos que estão sempre com febre
que são ingénuos como enigmas.

Há anjos que vivem em arranha-céus,
que trabalham em andaimes
de onde às vezes se precipitam de propósito.

E há anjos que são funâmbulos.

Há anjos que talvez nos surpreendam
que às vezes nos saúdam, disfarçadamente, por entre a multidão
que abrem os olhos de noite.

Que, na sua voz interrompida, mutilada,
pedem calma.

Pedem muita calma.

António Ladeira
in RESUMO, a poesia em 2010, Lisboa: Assírio & Alvim, 2011, pp.19-20.

***


» Pedro Catarino abordou um texto de Gonçalo M. Tavares que reflecte, de forma muito pertinente, sobre os conceitos de durabilidade, consumo, (in)utilidade e imortalidade, contrapondo os elementos da natureza às obras/produtos (como a arte) concebidos pelo Homem.

Alimentos e arte

As coisas menos duráveis são, como lembra Arendt, citando Locke, os alimentos: coisas indispensáveis à subsistência do Homem, essas coisas que "se não forem consumidas pelo uso se deteriorarão e perecerão por si mesmas". 

Os alimentos são assim as coisas com o ciclo mais rápido de aparecimento-desaparecimento. Desde o momento em que são colocados no mundo até ao momento em que se deterioram e desaparecem, o tempo é mínimo. São coisas - os alimentos (não são acções ou discurso, isso é evidente) -, são coisas, sim, mas que têm dentro de si uma capacidade de autodestruição (capacidade ou falta, dependendo do ponto de vista): aparecem para serem consumidos e se forem consumidos desaparecem de imediato. 


A digestão corporal é um espantosa fábrica de fazer desaparecer as coisas designadas como alimentos; desaparecimento a que damos o nome de transformação, pois essa coisa não desaparece como num passe de mágica, desaparece porque as suas partes estruturais são destruídas (destruir - perder a estrutura), ou seja, desaparecem porque vão aparecer noutro lado, com outra forma. E se o alimento não desaparecer, se não se transformar pela via da digestão, desaparecerá, transformar-se-á pela via da decomposição natural; depois de uma pequena permanência neste mundo, as coisas como os alimentos, "retornam ao processo natural que as produziu" (Locke citado por Arendt).


Veja-se de imediato a diferença entre o pão, a maçã e uma mesa ou outro material feito pelo homem. Há, nota-se nas coisas feitas pelo homem, um certa obsessão pela duração. A mesa tem de durar; o edifício tem de durar, e sendo as obras de arte, neste campo, uma espécie de arquitectura inútil, artesanato sem uso prático, a sua maior utilidade reside precisamente na duração. A arte é tanto mais útil, diríamos, quanto mais dura. E, nesse sentido, ocupará o topo de entre as coisas feitas pelos humanos. No limite, a mais importante coisa feita pelo Homem será aquela que se aproxime da durabilidade máxima, a imortalidade.


in Atlas do corpo e da imaginação


***

» Lúcia Mendonça falou de mudança, daquilo que exigimos ao mundo, da forma como este pode ser incrivelmente generoso, da espera não passiva, do esforço e determinação que essa atitude implica, e leu a seguinte passagem da obra O livro dos grandes opostos filosóficos, de Oscar Brenifier: 

Esperar, é ser activo ou passivo?

Por vezes, queremos muito uma coisa, agimos para obtê-la, mas todos os nossos esforços parecem não surtir efeito. Outras vezes esperamos e as coisas acontecem. Parece-nos que a nossa passividade age.
Talvez seja necessário agirmos sobre nós próprios para sabermos esperar.



 ***

» Ana Paula Baptista revisitou José Saramago com uma reflexão sobre os limites da racionalidade e da irracionalidade, do instinto e da violência/maldade no que toca às relações humanas na sociedade actual. 

A Racionalidade Irracional

Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá "que coisa tão cruel". Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno. 

Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra? 

Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer. 

Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias. 

in Diálogos com José Saramago

José Saramago [1922-2010]


***

» Marco Mackaaij enquadrou e declamou três poemas, bem ao seu jeito, havendo muitos mais escritos seus a descobrir no fértil e inspirado blogue http://devesacreditarnaprimavera.blogspot.pt.

Tocando e podando

Às vezes apetece-me violino, 

outras vezes prefiro motosserra.
Somos uma orquestra de cordas,  
correntes, crinas e dentes.  

Às vezes desafina, outras vezes 

pára - sem gasolina - mas 
volto sempre, tocando    
e podando.  

M.M. (2014)


Arrumador de palavras

O que pode fazer 

um pobre arrumador de palavras?

Quando vê um verso vago,

chama a atenção:
assinala,
assobia,
levanta a mão.

E elas hesitam mas vêm,   

estacionam, 
e rogam pragas:
já tinham visto o lugar 
e agora devem pagar? 

Mas afinal,  

o que pode fazer 
um pobre arrumador de palavras?
Só se as riscar… 

M. M. (2014)


Carta a um amigo na cidade

Cuida bem de ti,
come refeições variadas,
legumes, fruta, leite,
não exageres com os ovos
mas de vez em quando um naquinho de carne no tacho.
Morrer não faz mal,
adoecer sim. 
Na terra vivemos no inferno,
depois há-de melhorar,
dizem. 
(Come uma talhadinha de melão
de vez em quando.)
Não leves sujeitos obscuros 
para a tua casota que se chama quarto,
custa-te outra vez um casaco 
ou dinheiro. 
Bate antes uma punheta. 
No entanto correr riscos 
é o sal da vida,
também para paneleiros.
Pouco a pouco envelhecemos ambos
com pensamentos sobre ontem 
e preocupações sobre amanhã.
Ainda é um caminho desgraçadamente longo,
não te esqueças que te amo. 
Põe um cachecol quando sais, 
é novembro,
está a ficar frio.
Mas sai dos eixos pelo menos.

                                   O teu Eli.


Brief aan een vriend in de stad
Eli Scheen (1914-1982)
Trad. M.M. (2014)

***

» Esmeralda Lopes Alves partilhou com a tertúlia um poema de pendor existencial escrito pela sua filha Inês Alves: 

Plácida contemplação 

Vezes sem conta
Imagem de mim mesma
Sentada à mesa
... Só... 
Apreciando a vida 
Que passa, corre e por ninguém espera!

Vezes sem conta 
Prisioneira do medo 
Chorei lágrimas de angústia
De ver pra sempre passar 
A mesma imagem de mim!

Hoje, 
Puxando os grilhões do medo...
Procuro a paz e a calma da alma
Na plácida contemplação 
Da imagem de mim mesma
Sentada à mesa
... Só... 
Apreciando a vida 
Que passa, corre e por ninguém espera!

Porque hoje
Aceitar a calma solitária do eu
É retirar fardos de palha
De uma consciência repletas de Se(s) e Porquê(s).
Porque rescrever o passado não posso!
E o hoje corre simplesmente como um rio
Pra um Futuro que desconheço!
Hoje, contemplo placidamente o rio que corre,
Para onde quer que seja que as água desaguem...


***

 » Paula Torres recordou um escritor maior em língua portuguesa, Jorge de Sena, cuja obra poética está sendo justa e finalmente reeditada em dois tomos. Um poema intemporal, pleno de lucidez, inquietação, sonho e espírito crítico:  

Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. 
É possível, porque tudo é possível, que ele seja 
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, 
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém 
de nada haver que não seja simples e natural. 
Um mundo em que tudo seja permitido, 
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, 
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. 
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto 
o que vos interesse para viver. Tudo é possível, 
ainda quando lutemos, como devemos lutar, 
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, 
ou mais que qualquer delas uma fiel 
dedicação à honra de estar vivo. 
Um dia sabereis que mais que a humanidade 
não tem conta o número dos que pensaram assim, 
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, 
de insólito, de livre, de diferente, 
e foram sacrificados, torturados, espancados, 
e entregues hipocritamente à secular justiça, 
para que os liquidasse "com suma piedade e sem efusão de sangue". 
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, 
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas 
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, 
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, 
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido, 
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória. 
Às vezes, por serem de uma raça, outras 
por serem de urna classe, expiaram todos 
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência 
de haver cometido. Mas também aconteceu 
e acontece que não foram mortos. 
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, 
aniquilando mansamente, delicadamente, 
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus. 
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, 
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha 
há mais de um século e que por violenta e injusta 
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, 
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria 
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos. 
Apenas um episódio, um episódio breve, 
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis) 
de ferro e de suor e sangue e algum sémen 
a caminho do mundo que vos sonho. 
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém 
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. 
É isto o que mais importa - essa alegria. 
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto 
não é senão essa alegria que vem 
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém 
está menos vivo ou sofre ou morre 
para que um só de vós resista um pouco mais 
à morte que é de todos e virá. 
Que tudo isto sabereis serenamente, 
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, 
e sobretudo sem desapego ou indiferença, 
ardentemente espero. Tanto sangue, 
tanta dor, tanta angústia, um dia 
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga - 
não hão-de ser em vão. Confesso que 
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos 
de opressão e crueldade, hesito por momentos 
e uma amargura me submerge inconsolável. 
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, 
quem ressuscita esses milhões, quem restitui 
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado? 
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes 
aquele instante que não viveram, aquele objecto 
que não fruíram, aquele gesto 
de amor, que fariam "amanhã". 
E, por isso, o mesmo mundo que criemos 
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa 
que não é nossa, que nos é cedida 
para a guardarmos respeitosamente 
em memória do sangue que nos corre nas veias, 
da nossa carne que foi outra, do amor que 
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena [1919-1978]

“Os Fuzilamentos de Três de Maio”, de Francisco de Goya (1814)


***

» António Baeta surpreendeu os presentes com uma bonita imagem da Praça do Município (onde se localiza o café da Dona Rosa) da autoria de uma turista estrangeira de passagem, em tempos, pela cidade. Dissertou ainda sobre a beleza, simbolismo e carga histórico-cultural daquele espaço, nomeadamente enquanto lugar de (re)encontro, serenidade/apaziguamento e, sobretudo, enquanto precioso e singular ponto de confluência de várias dimensões marcantes da história da cidade: a ocupação islâmica, o centro de poder materializado no edifício dos Paços do Concelho e a significativa prosperidade da indústria corticeira patente em vários imóveis circundantes. 

Leu ainda, expressiva e sentidamente, o poema "Evocação de Silves", de Al-Mu'tamid, que tão caro lhe é: 

Saúda, por mim, Abû Bakr, 
os queridos lugares de Silves 
e diz-me se deles a saudade 
é tão grande quanto a minha. 
saúda o Palácio dos Balcões, 
da parte de quem nunca o esqueceu, 
morada de leões e de gazelas 
salas e sombras onde eu 
doce refúgio encontrava 
entre ancas opulentas 
e tão estreitas cinturas. 
moças níveas e morenas 
atravessavam-me a alma 
como brancas espadas 
como lanças escuras. 
ai quantas noites fiquei, 
lá no remanso do rio, 
preso nos jogos do amor 
com a da pulseira curva, 
igual aos meandros da água, 
enquanto o tempo passava... 
ela me servia vinho: 
o vinho do seu olhar, 
às vezes o do seu copo, 
e outras vezes o da boca. 
tangia-me o alaúde 
e eis que eu estremecia 
como se estivesse ouvindo 
tendões de colos cortados. 
mas se retirava as vestes 
grácil detalhe mostrando, 
era ramo de salgueiro 
que me abria o seu botão 
para ostentar a flor.

in Adalberto Alves, Al-Mu'tamid - Poeta do Destino, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.


***

» Augusta Panarra Inácio preparou uma tripla partilha, entre poesia, reflexão filosófica e prosa sobre o quotidiano humano (feito de prisões, viagens e liberdades).

Conquista

Livre não sou, que nem a própria vida 
Mo consente. 
Mas a minha aguerrida 
Teimosia 
É quebrar dia a dia 
Um grilhão da corrente. 

Livre não sou, mas quero a liberdade. 
Trago-a dentro de mim como um destino. 
E vão lá desdizer o sonho do menino 
Que se afogou e flutua 
Entre nenúfares de serenidade 
Depois de ter a lua! 

Miguel Torga, in Cântico do Homem

Miguel Torga [1907-1995]

O pensamento de Rudolf Steiner

Nego-me a submeter-me ao medo,
Que me tira a alegria de minha liberdade,
Que não me deixa arriscar nada,
Que me torna pequeno e mesquinho,
Que me amarra,
Que não me deixa ser directo e franco,
Que me persegue,
Que ocupa negativamente a minha imaginação,
Que sempre pinta visões sombrias.
No entanto não quero levantar barricadas por medo do medo,
Eu quero viver, não quero encerrar-me.
Não quero ser amigável por medo de ser sincero.
Quero pisar firme porque estou seguro,
E não para encobrir o medo.
E quando me calo, quero fazê-lo por amor
E não por temer as consequências de minhas palavras.

Não quero acreditar em algo só por medo de não acreditar.
Não quero filosofar por medo de que algo possa atingir-me de perto.
Não quero dobrar-me só porque tenho medo de não ser amável.
Não quero impor algo aos outros pelo medo de que possam impor algo a mim.
Por medo de errar não quero me tornar inactivo.
Não quero fugir de volta para o velho, o inaceitável, por medo de não me sentir seguro no novo.
Não quero fazer-me de importante porque tenho medo de ser ignorado.
Por convicção e amor quero fazer o que faço e deixar de fazer o que deixo de fazer.
Do medo quero arrancar o domínio e dá-lo ao amor.
E quero crer no reino que existe em mim.

Rudolf Steiner [1861-1925]

Pensem comigo. Pensamos melhor. 

Encontrámo-nos no Inverno passado. Embrenhado na leitura de um livro, nem deu pela minha aproximação. Não fosse a advertência do rapaz do café, nem teria ousadia para interromper a leitura:
– Está sempre a ler! Lê os livros todos que estão na biblioteca! (Esta biblioteca é uma sala de convívio com algumas prateleiras de livros, a grande maioria em línguas estrangeiras). Como também gosta de livros, vá falar com ele.
Cumprimentei-o em inglês e, meia atrapalhada, devo ter feito alusão aos livros.
Estava encetada a conversa. Apercebi-me de que também falava francês e, por ser mais fácil para mim, assim continuámos.
Quem lê muito, tem sempre de que falar. Os temas, versando o obscurantismo da Idade Média ou o Iluminismo do séc. XVIII, as consequências do aquecimento global, do projecto do genoma humano ou as causas dos problemas múltiplos da Europa e do mundo, ou outros, eram sempre interessantes. 
– Se preferir, podemos falar em português – disse. 
Soube que era holandês, que falava várias línguas e que gostava de conversar.
Ouvindo muito mais do que falando, comecei a olhar o relógio, discretamente. Discretamente, é quase impossível quando damos ao tempo medidas diferentes.
Duas palavras haviam de bastar para, a contragosto, se terminar a conversa: “hora” e “almoço”.
Dias depois, encontrámo-nos de novo. Desta vez, falava de viagens. De capitais deslumbrantes e de ilhas cujos nomes eu nunca tinha ouvido. Utilizei as mesmas palavras se bem que houvesse, da minha parte, a tolerância possível dos meus princípios para finalizar mais o monólogo do que o diálogo.
Não fiquei a saber o seu nome nem que profissão tinha. Disse-me que, para vencer a cultura do medo em que tinha sido criado, no final da adolescência se tinha tentado libertar através da leitura e das viagens.
Foi a minha vez de falar de leituras e de viagens dado que a minha imaginação não foi mais longe. Enquanto o fazia, apercebi-me de que o estava a impressionar. Afinal, o meu relato era ínfimo a comparar com o dele.
Perguntou-me se tinha horas certas para comer. Se lia ao fim do dia, antes de adormecer. Se viajava com itinerários predefinidos em viagens organizadas. E se voltava sempre a casa.
Disse a tudo que sim. E, como ainda não tinha compreendido que estávamos em mundos diferentes, perguntei-lhe para onde ia, depois de deixar o Algarve:
– Não sei! Nunca sei para onde vou…
Olhou-me fixamente. Ainda agora recordo a força das suas palavras que nem a cor clara dos seus olhos, abrandou:
– És uma prisioneira!

Augusta Panarra Inácio
26/05/2014
(texto escrito propositadamente para A Tertúlia Mais Pequena do Mundo – realizada em Silves no Café da Dona Rosa)

***

» Videlmina Reis desassossegou positivamente os tertuliantes com duas reflexões intemporais retiradas, respectivamente, do actor Charles Chaplin e do escritor Milan Kundera (da marcante obra A Insustentável Leveza do Ser): 

A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos.

 Charles Chaplin [1889-1977]

Pelo facto de a vida ser, relativamente, tão curta e não comportar "reprises", para emendarmos os nossos erros somos forçados a agir, na maior parte das vezes, por impulsos, em especial nos actos que tendem a determinar o nosso futuro. Somos como actores convocados a representar uma tragédia (ou comédia) sem ter feito um único ensaio, apenas com uma ligeira e apressada leitura do script. Nunca saberemos, de facto, se a intuição que nos levou a seguir certo sentimento foi correcta ou não. Não há tempo para essa verificação. Por isso, precisamos de cuidar das nossas emoções com um carinho muito especial.


Sem comentários:

Enviar um comentário