quinta-feira, 18 de setembro de 2014

POESIA DE PEZINHOS MOLHADOS em Julho e Agosto


Durante os meses de Julho e Agosto, a Biblioteca Municipal de Silves e o seu grupo de Voluntários de Leitura espalharam poesia pelo areal das praias de Armação de Pêra e Praia Grande.

Encontrámos muito calor, naturalmente por vezes abrasador até, mas a força das palavras e dos (so)risos que despertámos e partilhámos refrescaram-nos por dentro. Encontrámos mais rapidamente esta frescura nas crianças de coração mais espontâneo e limpo, mas logo a seguir nos pais e adultos conscientes de que a literatura pode ser brincadeira linguística pura (como as adivinhas que constavam nos marcadores de livros para crianças que oferecemos ou os textos que lemos da autora Ana Goês) ou um momento de reflexão com expressões e uma linguagem embelezada, que formam o estilo e mundividência de um escritor.

Sobretudo à Ana Paula, à Paula Torres, ao José Paulo Vieira e à Vilma Ferian, voluntários incansáveis, o nosso MUITO OBRIGADA MAIS UMA VEZ!

Aqui ficam alguns textos e imagens da actividade “POESIA DE PEZINHOS MOLHADOS” deste ano, realizada no âmbito do Programa “Bandeira Azul” e do projecto “A Minha Freguesia a Ler +”…




Textos lidos por Ana Paula

5 de Agosto
Decidi criar gritos dentro de mim. Abro a boca e engulo todos os sons que consigo.
Depois, não os deixo sair.

6 de Agosto
Tinha gritos fechados há tanto tempo no meu peito que, quando os soltei, saíram corcundas.
12 de Agosto
Fui até às montanhas junto ao mar. Lá em cima, abri a boca para soltar um grito que tinha ficado esquecido.
Não quis sair. Tive de o expulsar aos berros.
Os gritos, quando passam muito tempo presos, ficam uma porcaria. Como os vegetais no frigorífico.

In CRUZ, Afonso, O livro do ano

Mar

I
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

II
Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.

                                                                                     In ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, Poesia I

O mar dos meus olhos

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma

E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma
                                                                                     In ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner, Poesia




Textos lidos por José Paulo Vieira

O romance ingénuo de duas linhas paralelas 

Duas linhas paralelas
Muito paralelamente
Iam passando entre estrelas
Fazendo o que estava escrito:
Caminhando eternamente de infinito em infinito.

Seguiam-se passo a passo
Exatas e sempre a par
Pois só num ponto do espaço
Que ninguém sabe onde é
Se podiam encontrar,
Falar e tomar café.

Mas farta de andar sozinha
Uma delas, certo dia,
Voltou-se para a outra linha,
Sorriu-lhe e disse-lhe assim:
'Deixa lá a geometria
E anda aqui para o pé de mim…!
Diz a outra: 'Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar,
Temos de ir devagarinho
Andando sempre a direito
Cada qual no seu caminho!

Não se dando por achada
Fica na sua a primeira,
E sorrindo amalandrada,
Pela calada, sem um grito,
Deita a mãozinha matreira
Puxa para si o infinito.
E com ele ali à frente,
As duas a murmurar,
Olharam-se docemente
E sem fazerem perguntas
Puseram-se a namorar.

Seguiram as duas juntas.
Assim nestas poucas linhas
Fica uma história banal
Com linhas e entrelinhas.
E uma moral convergente:
O infinito afinal
Fica aqui ao pé da gente.

José Fanha
In http://queridasbibliotecas.blogspot.pt/2008/01/romance-ingnuo-de-duas-linhas-paralelas.html






Textos lidos por Paula Torres

O Realejo

Eu toco piano
dizia um
eu toco violino
dizia outro
eu toco harpa eu toco banjo
e eu toco violoncelo
eu toco gaita de foles...eu toco flauta
e eu toco castanholas.
E todos falavam sem parar
do instrumento que tocavam.

Já não se ouvia a música
toda a gente falava falava
e ninguém tocava
mas a um canto havia um homem que se calava:
«Que instrumento toca o senhor
que está tão calado e não diz nada?»
perguntaram-lhe os músicos.
«Eu pratico realejo
e também sei praticar facas»
disse o homem que até então
não tinha dito absolutamente nada
e em seguida levantou-se de faca na mão
e matou todos os músicos
e tocou realejo
e a sua música era tão autêntica
tão alegre e tão bonita
que a filha do dono da casa
saiu debaixo do piano
onde adormecera de tédio
e disse:
«Eu brincava com o arco
jogava à bola e ao mata
jogava à macaca
brincava com um balde
e com uma pá
brincava às casinhas
brincava às escondidas
brincava com as minhas bonecas
e com uma sombrinha
brincava com o meu irmão
e com a minha irmã
brincava aos polícias e ladrões
mas agora acabou-se
quero brincar aos assassinos
quero tocar realejo.»

E o homem pegou na mão da menina
e correram vilas e aldeias
entraram em casas e jardins
e mataram imensa gente
e depois casaram
e tiveram muitos filhos.

Mas
o mais velho estudou piano
o segundo violino
o terceiro harpa
o quarto castanholas
o quinto violoncelo
e depois desataram a falar a falar
já não se ouvia a música
e voltou tudo ao princípio!

Areias movediças

Demónios e maravilhas
Ventos e marés
O mar já se retirou para longe
E tu
Como alga docemente acariciada pelo vento
Agitas-te em sonhos no leito de areia
Demónios e maravilhas
Ventos e marés
O mar já se retirou para longe
Mas nos teus olhos entreabertos
Ficaram duas pequenas ondas
Demónios e maravilhas
Ventos e marés
Duas pequenas ondas para me afogar.

Sou como sou

Sou como sou
Sou destrambelhada
Quando me apetece rir
Rio à gargalhada
Amo quem me ama
Que culpa tenho
Se não é o mesmo
Que de cada vez amo
Sou como sou
Sou mesmo assim
Que mais quereis
Que quereis de mim

Sou feita para agradar
E não posso mudar nada
Tenho saltos muito altos
Cintura bem cavada
Seios muito rijos
Ando maquilhada
E depois?
Que têm vocês com isso
Sou como sou
Ando com quem quero
Que vos importa
O que passou
Sim amei alguém
Sim alguém me amou
Como só as crianças sabem amar
Amar amar...
Porque me interrogais
Estou aqui
para vos agradar
E nada mais posso dar.

Pequeno-almoço

Deitou o café
Na chávena

Deitou o leite
Na chávena com café

Pôs o açúcar
No café com leite
Com a colher
Mexeu
Bebeu o café com leite
E pousou a chávena no pires

Sem dizer palavra
Acendeu
Um cigarro
Fez círculos
Com o fumo
Deitou a cinza
No cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar

Levantou-se
Pôs
O chapéu na cabeça
Vestiu
A gabardine
Porque chovia
E saiu
Para a chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
E eu pousei a cabeça na mão
E chorei.
                                                                                                                In PRÉVERT,   Jacques, Paroles




Textos lidos por Sónia Pereira







Era uma vez dois.

Era uma vez dois. Ela morava num incêndio. Ele, numa gota de chuva. Encontravam-se. Às vezes, pouco.
Encontravam-se ao ar livre, neste banco de jardim, naquele banco de jardim.
- Onde moras?
Ela não dizia «Num incêndio»
- Numa zona quente – dizia.
Ele não dizia »Numa gota de chuva»
-Numa zona húmida – dizia.
A tentação era conhecerem a casa um do outro.
Alguma vez havia de ser. Foi o que ela pensou, sem medir o risco:
- Quero ir a tua casa.
- Não tem condições – desculpou-se ele. – Está num caos.
- Isso que importa? Vamos arrumá-la, os dois.
- Não, hoje não. Fica para outra vez.
Susteve-a. Para desviar-lhe os intentos, propôs por seu turno:
- Só se fôssemos à tua …
-Não há hipótese – respondeu ela, num repente.
- Porquê? Eu gostava.
- Noutra altura. Hoje não.
- Também não?
- Também não.
Ficaram que tempos em silêncio, naquele jardim desabrigado.
- Achas que algum dia poderei ir a tua casa?
- perguntou um, não importa qual.
- E eu, achas que algum dia poderei ir a tua casa?
- perguntou um, não interessa qual.
- E eu, achas que algum dia poderei ir à tua casa? – respondeu, perguntando, o outro.
- Receio que não.
- Também diria o mesmo.
Estavam a ser sinceros. Começavam a encarar a realidade. Mas talvez já fosse tarde, ou melhor, a realidade é que se atrasara, porque eles os dois estavam dentro do seu próprio tempo.
- E se procurássemos um sítio onde coubéssemos e que não fosse demasiado quente nem demasiado húmido? Um sítio à nossa medida.
Uma casa para os dois.
Quem propôs, ou ele ou ela, e com alguma convicção, obteve do outro a resposta adequada:
- Onde tu te sentires bem, também eu me sentirei.
Enganava-se. Enganavam-se ambos, aliás, porque o abrigo que escolheram  não os satisfazia em nada. Ele afogueava-se. Ela enregelava.
-Vamos desistir? – propôs um deles.
- Se desistimos, espalhamos o desânimo.
Seremos responsáveis pelos que não tentam, pelos que perdem antes de tentarem. Vamos dar-lhes razão. Argumentos.
Supunham-se uma fábula e queriam a todo o custo provar fosse o que fosse, sacrificar-se em favor da fábula que julgavam encarnar.
- Estou exausta – disse ela.
- Também estou exausto – disse ele.
Abraçaram-se. Despediram-se. E ele, que nascera numa gota de chuva, encaminhou-se para um incêndio. E ela, que nascera num incêndio, foi à procura de uma gota de chuva.

In TORRADO, António, Almanaque lacónico



Amor em primeiro lugar

Adoro o tema.
Adoro-te, Ema!

A mala ia mais cheia.
Amá-la-ia mais cheia…

Ameia mais velha parece impossível.
Amei a mais velha, parece impossível!

Amor em feriado…
Amor enfreado…

In GOÊS, Ana, Aliás voltas sempre Ali às voltas sempre



A gigantesca pequena coisa


Num dia de verão, ela passou por ali, mesmo ao lado dos pés de Sebastião.

Uma menina tentou apanhá-la, como se apanha uma mosca.

A senhora do crocodilo ficou à porta, a esperar por ela, durante longos meses. Nunca viu chegar nada. Há pessoas que não sabem reconhecê-la.

Alguém a encontrou no meio da chuva, um minuto ou dois, no máximo. Esse minuto bastou-lhe.

Ela deslizou por baixo de uma mão, durante as férias grandes. Um ligeiro estremecimento e foi tudo, nada mais.

Um senhor já de idade encontrou-a dentro de um floco de neve, no frio que vinha de longe. Por um momento, voltou a sentir-se criança.

Muitas crianças, ao crescerem, descobrem que ela já não está na gaveta dos brinquedos, nem na caixa de bombons. »Ainda bem!» pensam elas.

É difícil acreditar, mas algumas pessoas tiveram muito medo dela. Essas pessoas fecharam as portas, afastaram os outros, construíram muros.

Um dia, como por brincadeira, ela escondeu-se numa lágrima e encheu um homem de nostalgia.

As pessoas encontraram-na nos cheiros, nos olhares. Nos braços dos outros.

Outros procuraram-na sem parar. Por vezes, tentam consegui-la com dinheiro ou fechá-la numa caixa. Mas é impossível retê-la. Ela passa apenas.

Esvoaçando como uma folha, pousa num ombro.
E voa logo, desparecendo de repente.

Ela estava ali, aninhada mesmo à frente do nosso nariz. E mais uma vez, não conseguimos vê-la.

Foi a esta pequena coisa invisível, mas gigantesca, que alguém um dia chamou felicidade.

In ALEMAGNA, BEATRICE, A gigantesca coisa pequena




O papagaio de Monsieur Hulot por David Merveille, a partir do filme homónimo de Jacques Tati

Um belo livro sem texto, cuja leitura se faz através da leitura das imagens. Com um protagonista hilariante, o leitor vive os episódios imprevisíveis deste senhor que provoca os maiores desastres por onde passa sem ter sequer consciência disso…Ideal para pais e filhos, pois divertem-se e riem todos, ao mesmo tempo que fomenta a imaginação e concentração de ambos. Contar a história deste livro? Essa é uma missão completamente impossível, já que os pormenores e as leituras ambíguas que ele suscita são prova de literariedade pura…

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