terça-feira, 3 de dezembro de 2013

No rescaldo do debate com Paulo Morais

No último Sarau Instável,  realizado a 29 de Novembro passado, o convidado Paulo Morais revisitou vários tópicos abordados no seu mais recente livro: Da Corrupção à Crise. Que fazer? (uma edição da Gradiva).

A sala foi pequena para mais de uma centena de pessoas que aderiu ao evento e que não se coibiu de colocar várias questões ao conhecido professor universitário e activista cívico. Um debate de cerca de três horas em torno de questões que interessam a todos e a todos afectam, como a transparência, a corrupção, o sistema político-partidário e sua relação com a Banca e com os interesses dos grandes grupos económicos, o papel dos eleitores, etc.

O Sarau pretendeu ainda aprofundar certos temas específicos, de forma a que o público presente ficasse com um conhecimento e visão mais concretos e consistentes de várias matérias relativas ao binómio Corrupção/Crise, como sejam: 

. Veiculação pública de duas mentiras: os portugueses são os principais responsáveis pela crise; e o estado a que se chegou é inevitável e inalterável, não havendo outras saídas;
. Conflito de interesses/regime de incompatibilidades (quer no caso dos deputados da Assembleia da República, quer a nível de outros cargos públicos de gestão/administração);
. Cultura do "respeitinho";
. Mecanismos de denúncia e de protecção legal dos denunciantes / descriminalização da difamação;
. Presunção de inocência e seus efeitos (legitimidade legal vs. legitimidade ética);
. Índice de Transparência Municipal (baseado em 83 indicadores agrupados em 7 dimensões: informação sobre organização, composição social e funcionamento da edilidade; planos e relatórios; impostos, taxas, tarifas, preços e regulamentos; relação com a sociedade; contratação pública; transparência económico-financeira; e transparência na área do urbanismo);
. Enriquecimento ilícito e prevenção da corrupção;
. Comissões de inquérito na Assembleia da República: função e resultados práticos / desresponsabilização e negligência dos dirigentes (a argumentação do desconhecimento e a "amnésia selectiva");

. Incumprimento, por Portugal, de 12 das 13 recomendações feitas pelo Grupo de Estados contra a Corrupção (GRECO) do Conselho da Europa;
. Crise da democracia: renovação dos actores e das práticas;
. Descrença no modelo europeu (uma Europa que salva bancos em vez de salvar pessoas);
. "Vassalagem à corrupção": os perigos do contágio angolano;
. Minoria corrupta e "exército incontável" de cúmplices passivos;
. Saídas da crise (caminhos de mudança do actual cenário):
     » O combate eficaz à corrupção
     » Transparência na vida pública
     » Leis claras e simples
     » Uma Justiça eficaz
     » Uma solução justa para o défice
     » O combate ao desperdício
     » Uma nova classe dirigente.


Sugerimos três sites onde existe informação abundante, detalhada e actualizada sobre estes temas:
http://transparencia.pt/ 
http://blogues.publico.pt/asclaras/
http://madespesapublica.blogspot.pt/ 


Para fechar, aqui ficam três textos que foram lidos durante o debate, bem ilustrativos da temática em causa: 

A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande […]. Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros. Tão alheia cousa é não só da razão, mas da mesma natureza, que, sendo criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer.

Padre António Vieira, in Sermão de Santo António aos Peixes, pregado na cidade de São Luís do Maranhão em 1654, VII-VIII-IX


Alberto Pimenta

O desempregado com filhos

Ele estava desempregado há muito tempo.
Tinha filhos e do trabalho restavam cadilhos. E da fome sobravam rastilhos.
Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão.
Ele estava desempregado há mais tempo do que sabia, e mesmo se não queria, tinha filhos, aceitou.
Logo ali no cepo a deixou.
A mão, a mão, a mão.

Outra vez despedido de novo procurou emprego.
Só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão, aquela que te resta, a segunda mão.
Ele estava desempregado, tinha filhos, aceitou.
Porque o tempo lhe fugia entre os últimos dedos lhe fugia,
a mão, o tempo, a mão.

Porque o tempo lhe fugia, entre os últimos dedos lhe fugia,
a mão, o tempo, a mão.

E quando um dia lhe disseram; só tens emprego se te cortarmos a cabeça.
Ele estava desempregado há mais tempo do que podia, tinha filhos, aceitou, e baixando a cabeça, aceitou.

Porque o tempo lhe fugia, entre os últimos dedos lhe fugia,
a mão, o tempo, a mão.


Gonçalo M. Tavares, in O Senhor Brecht (2004)



A propósito do novo disco "Alegria" (2013), de Cristina Branco, 
em que revisita Gonçalo M. Tavares ("O desempregado com filhos"), 
entre outros autores portugueses

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