Não houve manifestamente tempo para que todos pudessem dar o seu testemunho em termo de intervenção oral, dada a grande afluência de interessados (habituais e estreantes) à tertúlia. De qualquer modo, aqui fica o nosso obrigado especial a todos os que participaram nesta tarde de convívio e partilha quer como "oradores", quer apenas como ouvintes e/ou comentadores.
» ANTÓNIO BAETA trouxe para a tertúlia um artigo sobre a obra Algarve em 3D e seu autor, Jacinto Palma Dias, que está sediado em Castro Marim, tem 67 anos e é autodidacta, agricultor biológico, produtor de flor de sal e autor de vários livros antropológicos sobre a região algarvia. O testemunho de Palma Dias faz uma retrospectiva do percurso da região e identifica singularidades culturais e motivos económicos, sociológicos e antropológicos de ascensão e queda do Algarve. O texto integral, lido por António Baeta a partir do seu telemóvel, pode ser consultado aqui
Jacinto Palma Dias
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» TERESA CALDAS revisitou o Mestre Han-Shan, do séc.IX, com este belíssimo texto de reflexão zen:
Põe-se um peixe em terra e ele recordará o oceano até morrer. Põe-se um pássaro numa gaiola e ele nunca esquecerá o céu. Cada um continuará a ansiar pela sua verdadeira natureza, ou o lugar que a natureza determinou ser o seu habitat natural.
As pessoas nascem em estado de inocência. A sua verdadeira natureza é amor, e alegria, e pureza. Mas emigram com muita facilidade, e sem pensar, da sua velha casa.
Não é isto mais triste do que o destino do peixe ou do pássaro?
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» DAVID GUERREIRO rumou de Armação de Pêra ao coração da cidade de Silves para se estrear na Tertúlia mais Pequena do Mundo, lendo, a partir do telemóvel, um pertinente (porque actual e intemporal) ensaio de José de Almada Negreiros:
Cultura e Civilização
Uma mesa cheia de feijões.
O gesto de os juntar num montão único. E o gesto de os separar, um por um, do dito montão.
O primeiro gesto é bem mais simples e pede menos tempo que o segundo.
Se em vez da mesa fosse um território, em lugar de feijões estariam pessoas. Juntar todas as pessoas num montão único é trabalho menos complicado do que o de personalizar cada uma delas.
O primeiro gesto, o de reunir, aunar, tornar uno, todas as pessoas de um mesmo território é o processo da CIVILIZAÇÃO.
O segundo gesto, o de personalizar cada ser que pertence a uma civilização é o processo da CULTURA.
É mais difícil a passagem da civilização para a cultura do que a formação de civilização.
A civilização é um fenómeno colectivo.
A cultura é um fenómeno individual.
Não há cultura sem civilização, nem civilização que perdure sem cultura.
José de Almada Negreiros [1893-1970]
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» ANA ROSENDO recordou um dos mais versáteis e criativos mediadores de leitura portugueses, Paulo Condessa (que há tempos esteve em Silves a dinamizar sessões nas escolas, associações e na Biblioteca Municipal), contando uma das micro-histórias exemplares/desconcertantes que consta da sua singular obra Bizz Dizz, publicada pela editora Mariposa Azual em 2000:
A menina-dos-olhos-do-pai
olha para o pai e pergunta:
- Hoje é amanhã?
- Essa pergunta é difícil de responder, filha.
Hoje nunca é amanhã.
Amanhã é depois de dormir.
- Mas depois de dormir, quando acordo
é sempre hoje, nunca é amanhã.
Paulo Condessa
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» FERNANDA MARCELINO recordou Mia Couto, lendo um divertido excerto (segunda imagem em baixo - clique para ler melhor) do seu romance Venenos de Deus, Remédios do Diabo, publicado em 2008 pela Editorial Caminho.
Cláudia Sousa Dias, bibliomaníaca e melómana de Famalicão, a propósito desta obra, escreveu no seu blogue http://hasempreumlivro.blogspot.pt/ o seguinte texto [excerto]:
Venenos de Deus, Remédios do Diabo é uma divertida sátira, como se subentende já a partir do trocadilho, implícito no título. Possui, no entanto, uma faceta dramática trágica, associada à fragilidade da situação social de que gozam as personagens femininas do romance, como é frequente nas estórias de Mia Couto. Outro tema recorrente na obra deste autor é, também, a pobreza endémica, reflectida na ausência estrutural de oportunidades com particular incidência nos meios rurais, assim como um conjunto de circunstâncias às quais não estão alheios alguns costumes e tradições associados à submissão de um dos géneros pelo outro. Ou, simplesmente, a que os mais fortes esmaguem os mais fracos, independentemente do género a que pertençam. Para fazer face a este domínio despótico, há quem recorra à construção de uma complexa teia de mentiras e enganos, com vista à sobrevivência, uma missão quase impossível em meio hostil.
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» ANA LEITÃO também se estreou nas tertúlias e enviou-nos um dos deliciosos textos-pensamentos de Afonso Cruz, publicado na tocante obra O Livro do Ano:
15 de Junho
como hoje choveu, decidi guardar alguma chuva no frasco que era de doce de morango e de pó de borboletas. vou usá-la no outono. tenho reparado que a grande diferença entre o outono e a primavera é que no outono as plantas morrem e na primavera nascem. a diferença só pode estar na chuva. a da primavera faz crescer e a outra faz morrer.
o meu irmão diz que sou maluca. mas eu sei que a culpa é da água. no outono irei provar que tenho razão. deitarei na terra água da chuva da primavera. deitarei primavera no outono.
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» MARCO MACKAAIJ, professor e amante/contagiador de poesia, brindou-nos com quatro poemas seus e um alheio (poesia holandesa), entusiasticamente lidos e enquadrados como já nos habituou:
Talvez por ter nascido
de uma semente
desvairada
Talvez por ter florido
tão só em terra
de ninguém
Nunca me desabrocham
no peito pátria
nem saudade
M. M. (2014)
Santo Agostinho no Intercidades
O cabelo dela era uma tentação de éguas selvagens.
Indomáveis contornavam o seu rosto e pelo vale
do pescoço corriam até às colinas do peito.
E prendiam o meu olhar
num êxtase de Santo Agostinho:
Senhor, dai aos meus olhos a castidade -
mas não ainda!
Só para disfarçar, cada vez que as crinas dela
galopavam na minha direcção,
eu fazia penitência e flagelava a vista
com as borbulhas do garanhão ao seu lado.
M. M. (2014)
Produtividade
Ele queria pagar e conversar
Mas ela só aceitava dinheiro
Enquanto pagou ainda tentou
Mas ela não lhe deu o troco todo
Só devolveu o que lhe devia
e não o que ele precisava
Devagar ele pegou na bengala
e com as compras na outra mão a tremer
ainda lhe desejou uma boa tarde
Mas ela tinha outra vez os olhos no tapete
e os produtos do próximo cliente
já zarpavam em frente ao leitor
E não lhe desejou nada
Nem bem nem mal
M. M. (2014)
Arrumações
Ela faz como a mãe dela
Ao fim de tarde quando as duas
Chegam a casa
Ela arruma a minha vida
Primeiro dá-me um raspanete
Depois arregaça as mangas
Na prateleira de cima um beijo e as histórias do dia
Na do meio mais beijos e brincadeiras
E na prateleira de baixo o trabalho
Com um post-it “amanhã”
Durante a azáfama ela ainda avisa:
Da próxima vez!...
E eu faço como faço com a mãe dela
Primeiro protesto, depois resmungo
E por fim rio e tento apanhá-la
M. M. (2014)
Consultem o blogue http://devesacreditarnaprimavera.blogspot.pt/
Eddy van Vliet [1942-2002]
Morte
Morte. Não tenhas medo. Não te demores
em frente à minha porta. Entra.
Lê os meus livros. Em nove de cada dez
tu ocorres. Não és uma desconhecida.
Não me faças passar por parvo com males
que ninguém se atreve a chamar pelo nome.
Não me ponhas numa cama no meio de crianças
babosas que de tão velhas não sabem o que dizem.
Não me tires dinheiro do bolso
para horas inúteis em clínicas chiques.
Limpa os pés e sê bem-vinda.
in Dood
Eddy van Vliet (1942-2002)
Trad.: M. M. (2014)
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» AUGUSTA PANARRA INÁCIO, professora e residente em Armação de Pêra (também estreante nesta tertúlia), evocou a cidade de Silves e o seu esplendoroso passado histórico com um poema da sua autoria, escrito a 18 de Junho de 1989:
Nos oitocentos anos da tomada da cidade
Oito Séculos se passaram
Depois que aos Mouros te tomaram
SILVES, princesa do Arade…
Páginas de História se escreveram
E outras tantas se encheram
De poemas de amor e de saudade.
Do Ocidente Peninsular eras estrela
Cintilante, grandiosa e bela.
Com terras férteis e próxima do mar.
Por Mouros possuída
Por muralhas inexpugnáveis defendida
Eras a cidade que urgia conquistar.
Ataques renhidos se travaram
Cruzados e cristãos por ti lutaram
E só pelo cerco haviam de vencer.
A sede e a fome foram tormenta
Que tempo demais ninguém aguenta
E acaba sempre por perecer.
As crónicas da época são documento
Da grande mortandade e sofrimento
Que as ameias do Castelo presenciaram…
O Reino de Portugal mais se alongou
A Fé de Cristo, a sul, se espalhou
E os Mouros, para África, recuaram.
Se, alguma vez, entristecida e saudosa
Dos tempos em que foste gloriosa
De nada te possas consolar
Esquece as águas claras do teu rio
E aspira durante noites a fio
O cheiro dos laranjais ao luar.
São Oitocentos anos de História
Que ainda perduram na memória
E fazem de ti um Monumento!
SILVES, museu histórico ao vivo
Onde cada pedra tem sentido
Jamais cairás no esquecimento.
***
» PAULA TORRES partilhou um poema do incontornável intelectual, erudito e poeta-escritor-tradutor Vasco Graça Moura, recentemente falecido:
Soneto do amor e da morte
quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.
quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não
tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.
in Antologia dos Sessenta Anos
Vasco Graça Moura [1942-2014]
***
» JOSÉ PAULO VIEIRA leu dois poemas seus anteriormente enviados por sms para colegas presentes na tertúlia:
O Sul do Som
Os sons que ouço
Que o tempo nos induz,
Em pautas de decibéis
Da natureza mãe,
São implantados na memória,
Ao tentar descrever
Os seus silêncios impregnados
De semínimas e notas dissonantes,
De colcheias, embora por vezes
Com-fusas e em eloquentes fortíssimos,
Mas também de semibreves
Com doces acompanhados em pianíssimo
De colcheias cheias de ternurentos afagos...
Talvez saídas de uma caixinha de música;
Preenchendo o vazio deixado
Por alguns compassos mais tresloucados
… atonais,
Querendo sair ainda mais
Daquelas cinco linhas,
Fugindo dos tempos
Que nos são dados
Pelo próprio tempo.
Ah!
Vou a caminho do reino dos algarves.
Será por isso,
Estes meus sons
Que pareço ouvir de,
Inquietação?...
(escrito a 9 de Maio de 2014 com pequenas alterações a partir de uma sms inicial enviada a Paulo Pires a 30 de Março de 2014, durante uma viagem de autocarro de Lisboa para Silves)
Sou mais sul,
Perto dele?...
… quase que o algarve
Me basta,
Agora que me vou chegando
A ele.
Quase que a chuva que cai
Me parece atingir,
Não me importando
Com isso.
Quase que o vento que a açoita
Me fustiga também,
Não me molestando
Porém.
Quase se faz noite,
A mim
Que mal parece
Ter começado o dia.
Nestas rodas
Que por cima do alfalto rolam,
Em cima delas permaneço quedo,
Em cima delas...
Meu pensamento enviesado
Por ora em realidades sobrepostas...
Talvez,
Agora,
Por pouco sou...
Silves,
Está quase perto.
Será que a seguir,
Desperto?
(escrito a 9 de Maio de 2014 com pequenas alterações a partir de uma sms inicial enviada a Sónia Pereira a 30 de Março de 2014, durante uma viagem de autocarro de Lisboa para Silves)
***
» PAULO PIRES recomendou três livros para leitura de férias:
- O silêncio dos livros seguido de Esse vício ainda impune, de George Steiner e Michel Crépu (Gradiva)
- Aforismos e afins, de Fernando Pessoa (Assírio & Alvim)
- O sorriso aos pés da escada, de Henry Miller (Edições Asa)
Para abrir o apetite, três aforismos de Pessoa inseridos na referida obra:
Be complete in everything, for to be complete in anything is to be right. All roads arrive at the same place.
(Sê inteiro em cada coisa, pois ser inteiro em qualquer coisa é estar certo. Todos os caminhos vão dar ao mesmo lugar.)
A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana. Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal. Não ter consciência dela e ela ser grande, é ser louco. Ter consciência dela e ela ser pequena é ser desiludido. Ter consciência dela e ela ser grande é ser génio.
Nunca tive dinheiro para poder ter tédio à vontade.
Henry Miller [1891-1990]
E um excerto do posfácio da aludida obra de Henry Miller, a qual constitui um momento verdadeiramente singular na sua carreira de escritor:
[...]
Embora nem sempre o tenha sabido, o palhaço exerce em mim uma atracção profunda, justamente porque está separado do mundo pelo riso. O seu riso nada tem de homérico, é um riso silencioso, o que nós chamamos um riso sem alegria. O palhaço ensina-nos a rir de nós próprios. E este nosso riso nasce das lágrimas.
A alegria é como um rio: corre incessantemente. Parece-me ser esta a mensagem que o palhaço procura transmitir-nos: deveríamos participar no fluxo e movimento contínuos, não pararmos para reflectir, comparar, analisar, dominar, mas continuarmos a fluir, sempre e sempre como a
música. Tal é o dom da renúncia, que o palhaço realiza simbolicamente. A nós nos compete torná-lo real.
Em nenhuma época da história da humanidade esteve o mundo tão cheio de sofrimento e de angústia. Contudo, aqui e além, encontramos indivíduos que não estão contaminados, manchados pela dor comum. Não são criaturas sem coração, longe disso! São indivíduos emancipados. Para eles, o mundo não é o que a nós parece. Vêem-no com outros olhos. Dizemos que morreram para o mundo. Vivem, no momento que passa, com toda a plenitude, e a radiação que deles emana é um perpétuo hino de alegria.
O circo é uma pequenina arena fechada, lugar de esquecimento. Durante alguns instantes permite que nos abandonemos, que nos dissolvamos em maravilha e felicidade, transportados pelo mistério. Saímos de lá como que envoltos numa neblina, entristecidos e horrorizados pela face quotidiana do mundo. Mas este velho mundo quotidiano, este mundo com o qual julgamos estar por demais familiarizados, é o único que existe - e é um mundo de magia, de magia inesgotável. Como o palhaço, vamos fazendo as nossas cabriolas, simulando sempre, adiando sempre o grande acontecimento. Morremos a lutar para nascer. Nunca fomos, nunca somos. Estamos sempre na contingência de vir a ser, separados, desligados para sempre. Sempre do lado de fora.
[...]
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